De letra

Dezessete anos, ambos. Colegas de sala. Ela, escrevia muito bem. Queria ser escritora. Ele, jogava bola muito bem. Futebol, claro. Aspirava a jogador profissional. Olhares, conversas, olhares, confidências, olhares… Fuxicos entre amigas, tapinhas nos ombros entre amigos. Um encontro da classe inteira para um cinema, Só os dois foram. Tudo combinado.  Todo mundo sabia que um gostava do outro, menos eles mesmos. Namoro.

Concurso literário na escola. Ela se inscreve. Tem de elencar só três das poesias entre as milhares que tem. Ele tenta ajudar. Inútil. Acha tudo que ela escreve excelente. Ela ganha a primeira e a segunda colocação. Ele estava na premiação. Tenta carregá-la nos ombros pela escola, ela não deixa, fica sem graça.

Campeonato interno. Toda sala com seu time. Ele é o artilheiro, da escola. Ele é o time. A 3aC vence, estará nos jogos escolares representando a todos.

Campanha difícil, mas a E.E.P.S.G “Jardim Sonho e Fé” começa bem, vai chegando aos poucos. Toda partida é bem suada, literalmente. Mas a escola tem seu craque. E é graças a ele, que, nos 47 do segundo tempo (acréscimos do juiz) conseguindo sair de uma marcação mais que cerrada, cruel até (as canelas que o digam) , consegue um gol. O gol da classificação para as quartas de final. O gol que eliminaria o time favorito, de alunos de escolinhas de futebol, com uniforme próprio. É a escola pública versus a particular, é a garra versus a comodidade, é o esforço versus o patrocínio.

Foi um gol dedicado a ela. Ela não estava no jogo. Nem nesse, nem nos anteriores. Em nenhum deles.

Foi um gol dedicado a ela e ela não gostou, não entendeu. Ele chegou carregado nos ombros pelos colegas desde o quilômetro e meio que separavam o campo da sede do time. Todos falavam ao mesmo tempo. A porta da escola em hora de saída, congestionada. Ele disse que o gol foi pra ela. Colegas contavam em detalhes como tinha sido o gol. Cada um aumentando algo. Cada um contando os dez, os vinte, os noventa minutos anteriores. Ele repetiu que o gol foi pra ela. Perguntou o que ela achava. Ela, pega de surpresa, sem tempo de lapidar, disse que aquilo não era algo que se dedicava a uma namorada. Silêncio. Esperavam uma retratação. Ela confirmou “É óbvio que isso não é o tipo de coisa que se dedica a uma namorada. Um poema é algo que se dedica a uma namorada”. Havia quem concordasse, não estava no jogo, é claro.

O casal, a sós, discute. Há muito que ela espera um poema dele, ou pelo menos um cartão no dia dos namorados, ou no aniversário dela. Há muito que ele espera que ela vá ver, nem que seja um só, jogo dele. Não é possível que ela esteja tão ocupada, não é possível que sendo tão inteligente ela precise estudar tanto. Ela entrega: não gosta de futebol. Futebol é das massas é alienante, é usado para desviar a atenção dos problemas político-econômicos-sociais do país. Mas ela o apoia, é claro. Ele rebate que não é estúpido, sabe do uso que se faz do futebol mas não é por isso que vão tirá-lo dele. Se o futebol não fosse tão contagiante, tão empolgante, tão..ele não seria usado por ninguém, pra nada. É a sua força que gera o oportunismo do uso e não o uso que gera a sua força. E que raio de apoio é esse que ela nunca está ao lado dele, nunca comemora com ele e se ofende com a dedicatória? Ele nem sabe pra que serve literatura e estava com ela no maldito concurso. Como você consegue estar lá ao meu lado sem entender o que eu faço? Como é que você consegue dizer que me apoia sem concordar com o que eu faço?.

Dias depois, mesmos separados, ela vai ao jogo. Chega tímida, quase resignada. Depois já está falando, gritando, xingando. É realmente contagiante. Fica indignada e até preocupada quando ele leva uma falta. Justifica todas as que ele comete. Fim de jogo. Estão na final. O time silencia ao vê-la. Deixam o casal a sós. A arquibancada é testemunha do cumprimento sem graça entre ambos. Silêncio. É ele quem diz “sabe, eu nunca vou conseguir dedicar a você um poema porque…porque eu não sei escrever assim que nem você”. Ela, condescendente, diz a ele que não precisa escrever como ela. Ele sorri  “Precisa sim. ”

Ele a leva pela mão até o campo, perto das traves  “Sabe… meu papel é isto daqui onde a gente tá pisando e a bola é a minha caneta, e ali ó “ aponta as traves “ ali é onde o negócio tem que ficar bonito sabe é como esses negócio aí de metáfora, rima… tipo…gol assim rasteirinho de passe que a gente recebe fácil do companheiro, sem marcação e de goleiro que não tem vontade de ir na bola… gol assim é que nem rima pobre, que você estava me explicando… e eu nunca… eu nunca te dedicaria algo pobre.”

Não é preciso dizer que o casal voltou a ser casal. Nem que ela estava lá, no dia da final. Não foi o primeiro, nem o terceiro, o gol, que ele dedicou a ela. Foi só o da dividida, dividido. O da vitória. Pois só este. Só este. Era pura poesia.

(Março de 2006)

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