O pai sempre lhe cobrava um neto. Era imaginativo, sempre arranjava meio de dizer a mesma mensagem com roupagem diferente:
– Você fica aí desperdiçando vida.
O rapaz levanta pouco os olhos do livro, com nenhuma vontade de iniciar conversa:
– Do jeito que o senhor fala, até parece que eu não faço nada dos meus dias.
O mais velho não perde o fio:
– Você tinha é que cuidar de criar uma família. Arranjar moça com dom de boa mãe. Quero uma casa cheia de netos…
O filho nada respondeu, entretido em ideias escritas. Mas o pai continua:
– Vinte e três anos… na sua idade eu já era pai seu, de Tônia e de Juninho.
O rapaz deixa o livro descansar da conversa. Sem brigas de atenção.
– Juninho não tinha nascido
– Mas já estava em barriga…
– Vá cobrar de Tônia.
– Não preciso, Tônia já está casada, o andamento natural é logo, logo vir frutos.
– Não desperdiçar vida é fazer dela o que se tem gosto, não vou me forçar a casar com urgência só porque o senhor manda.
E volta a ler, dando a conversa por terminada. O pai se impacienta com tão pouca atenção:
– Da nossa família, o tempo é inimigo e disso você bem sabe. Como pode se pôr aí tão tranquilo?
O mais velho se referia ao acontecimento de constantes mortes prematuras nos homens daquela linhagem, por conta de coração que resolvia se aposentar cedo. O pai do pai havia morrido com 42 anos, o avó do pai, com 44, o bisavó do pai, com 40.
O rapaz nada responde, os olhos pousados em parágrafos. Seu pai se coloca em frente dele, em alto volume e gesticulando:
– Você fica aí só cheio de livros.
Quem se impacienta é o jovem:
– Estudando, né, pai?
– Foi o que eu disse.
Lembrou ao pai que o estudo encurta os degraus do caminho da melhoria de vida. Mas o homem vivido não se deixou vencer:
– Não ocupe muitas horas em melhoras de resultado que você pouco vai desfrutar…
O mais velho sabia da demora que há para o estudo se converter em “melhorias” e arremata:
– … filho traz melhoras rápidas, melhoras de alegria.
Faz-se grande silêncio. Muda então o tom imperativo para um mais conselheiro:
– …filho, não espere que seu caprichoso coração dê mostras de greve, como o meu, para se preocupar com o andamento da vida.
O pai já havia se desmanchado um pouco, em paradas.
Mas acontece que ao coração do rapaz se somavam outros caprichos, nenhuma moça lhe despertava o amor. Já havia, é claro, investido em namoros, mas nenhum de retorno a longo prazo. Preocupava-se com a vida, e muito. Muito aprendia, pois queria estudar no estrangeiro, ver outras paisagens, outras vidas.
Sobre tais planos, o pai era taxativo:
– Muito planejamento é desperdícios.
– Tão curta vida e o senhor gasta a sua discutindo comigo…
– Ora, estou de acordo com minhas ideias, gasto tempo com filhos, mesmo que em desentendimentos.
-…..
– Coração que faz greve, sem direito a negociação. Fato é que ninguém da nossa família até hoje ganhou das teimosias caprichosas do coração.
O moleque desafiou: não seria melhor não colocar criança no mundo, fadada a tão curto destino?
– Arre…não dá pra conversar contigo.
Não que não se imaginasse casado e com filhos. Porém, não estava interessado em que prematuros planos de descendência viessem bagunçar a organização da sua existência.
Chegou a se formar engenheiro, a morar no estrangeiro.
E o pai, sempre decepcionado: desperdícios.
Ao voltar, se fez em bom emprego do qual gostava.
Conviveu em outros namoros, mas ninguém ainda habitara seu coração.
Brincava com os sobrinhos, emprestava dinheiro aos irmãos, visitava a mãe, ralhava com o pai. Até que o coração deste se aposentou de vez, após 47 anos de pulsações constantes.
O moço, na juventude, achava corriqueiro o amor não ter sido ainda achado. Mas aos 30 anos, doía-lhe o peito e a existência essa ideia de falta, embora, claro, nunca o tenha admitido ao pai.
Aos 35 ele se sente mal jogando futebol com os amigos. Palpitações, desmaia.
Assina assim a sua sina?
Socorrido, descobre o nome e sobrenome da doença. Enfermidade conhecida há mais de um século, ao alcance de qualquer manual médico. Aprende que remédios tomar, como se alimentar, quais exercícios, ou não, fazer.
E continuou vivendo.
Vida normal. Intercalada de visitas mensais ao cardiologista.
Em uma dessas, encontrou moça também de coração aos cuidados.
A união se deu quando ele tinha 42 anos, sua filha nasceu três anos depois.
Fez questão de levar a bebê para ser conhecida pelo avô.
Para a lápide, sentenciou:
– A minha menina está aqui…o senhor é que não se cuidou.
(Março de 2015)