( Cena escrita em novembro de 2016 no Núcleo de Dramaturgia do CLAC – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, dentro da proposta da dramaturga e professora Solange Dias de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Porém, a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores do CLAC e hoje, o Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo não existe. Este e outros projetos se perderam.)
PERSONAGENS:
NARRADOR
PAI (ANTÔNIO)
MÃE (TEREZA)
MENINO (JUNIOR)
FILHA MAIS VELHA (ROSA)
FILHA DO MEIO (MARTA)
CACHORRO (DICK)
HOMEM 1
HOMEM 2
(Narrador) Uma Kombi, cheia de pessoas unidas por laços de sangue, sobe o recém-inaugurado viaduto do km 23 da via Anchieta e pára no meio dele. (O pai desliga o carro)
(Pai)
– Vamos todos tirar uma foto aqui.
( A mãe, surpresa)
– Podemos parar aqui?
(Pai)
– Ora, mulher, não tem trânsito nenhum…
(O menino estranha)
– A gente não ia para a praia?
(Pai, resoluto)
– Vamos tirar foto!
(Toda a família desce do automóvel, o cachorro fica. Enquanto o pai ajusta o tripé e a caixa o menino corre, a mãe grita)
– Não atravesse a rua, filho, Pelamordedeus não corra pro outro lado!
(As duas moças combinam.)
(Marta)
– Vamos contar os carros que passam lá embaixo?
(Rosa)
– Vamos! Eu conto os fuscas e você conta as kombis.
( Narrador) Marta sabe que vai perder esse jogo porque tem muito mais fusca que Kombi, mas ela não liga. Aliás, a rodovia parece um tapete com estampa de fuscas coloridos.
(Puxando o menino pela mão, a mãe lamenta)
– Eu nem estou com roupa pra foto, estou de calça…
(Pai, sem parar de ajustar todas as partes da máquina fotográfica)
– Por que você não fez como suas filhas que se vestiram de saia como uma mulher deve se vestir?
(Mãe)
– Elas estão na idade de namorar e se preocupar com isso…
(Narrador) Teve vontade de continuar a frase…
(mãe – voltada para o público) “Com três filhos – o Jr que só sabe aprontar – e para acompanhar o que você inventa só me vestindo de jeito prático.”
(Narrador) Mas teve medo da bofetada. Se ela tivesse só o serviço de casa para fazer e olhar as crianças, mas era um tal de…
(Mãe – voltada para o público) “Tereza, me traz isso. Tereza me traz aquilo”
(Narrador) Muitas vezes também tinha que carregar os galões de tinta, as ferramentas…
(Mãe – voltada para o público) “Vê se dava para usar saia?”
(Narrador) As mulheres que tinham marido trabalhando fora é que tinham sossego. Marido no quintal de casa é trabalho dobrado. Tinha saudades de quando ele trabalhava em fábrica, com horário para chegar e, principalmente, horário para sair. De manhã, com as crianças na escola, ela podia fazer as coisas do jeito dela, no ritmo dela. Varrer os quartos com calma, planejar ela mesma o almoço. Sair para mercearia e o açougue com tempo para conversar com as vizinhas.
(Mãe – voltada para o público) “ Com o homem em casa isso acabou, ele acha ruim que eu demoro e acha ruim o que eu compro, se eu trago frango cisma que quer carne e eu tenho que voltar na açougue e apressar o almoço, pois o homem também quer comer meio-dia em ponto. Meio dia e dez já está bufando… E o frango nem fica pro outro dia, porque ele também não quer frango no dia seguinte, quer (irônica) peixe ao forno. Tive que dar o frango pra vizinha e ainda ouvir do desperdício de dinheiro!”
(Narrador) Não faltava dinheiro quando ele trabalhava em fábrica e ela decidia o almoço.
(A mãe assente com a cabeça a fala do narrador, pausa, olha para a montadora de carros ao fundo e, ainda na ponta do palco, fala mais para si mesma que para o público) “AVolks está chamando gente, bem que o marido podia se animar…”
(mãe – voltando para a cena – fala para o pai/marido)
– Ouvi dizer que a Volks está contratando, pagam bem…
(O marido a ignora)
– Pronto, fiquem ali. (aponta)
(A família posiciona-se, um ao lado do outro. O menino escapa…)
(O menino, olhando sem parar para os lados, fala, voltado para o público)
“Onde será que está a praia? Não vi daquele lado, será que é descendo ali?”
(Todos colocam-se do lado oposto de onde a Kombi foi estacionada, na frente do anteparo do viaduto.
A mãe tem que trazer o menino pela mão. Ouve-se som de metal sendo arranhado)
(O cão chora dentro do carro. Voz em off, ganindo) “Quero sair, quero sair! Está quente aqui dentro. Quero sair! Cadê todo mundo! Quero sair! Cadê a Ma? Quero o colo da Má! Quero sair!”
(A pai fotógrafo analisa)
– Aí não está bom, não dá para ver os carros passando na rodovia.
(A mulher, psiquicamente cansada)
– Mas, homem de Deus, para quê ver os carros?
(Pai contrariado, levemente irritado.)
– Ora, por que é uma foto para mostrar o progresso. Nós temos uma foto do viaduto em construção, agora teremos a foto dele pronto com os benefícios que trouxe. (voltado para o público, sem sair do lugar) “Mulher que não entende nada. Só vê o que está na frente. Não se vê parte da História. Não ambiciona…”
(Mãe) – Antônio, se você quer a foto do viaduto, por que nós precisamos estar nela?
(Pai) – Ora, mulher, não me aporrinhe!
(O pai vem para ponta do palco e se volta para o público) “Mulher que não entende nada de fotografia e nem fica quieta para aprender. Tira-se a foto com as pessoas para provar que se esteve no lugar. Fotógrafo e modelos como parte de um todo, todos elementos da foto. Mas que importância ela dá pra arte da coisa? Nenhuma! Com a mania de limpar, quase manda embora os rolos fotográficos, segundo ela ‘ essa tralha’. Quase manda pelo ralo o revelador, em vez de deixar a bandeja quieta, porque achou que era água suja. Tenho que trancar a porta do quarto escuro para ela não inventar de abrir quando estou no meio de uma revelação. Depois reclama que ficou esperando para falar comigo, e é cada coisa estúpida! Que me importa se ela vai fazer uma sopa com a carne que sobrou do almoço? Que faça! Desde que seja comível. Parece que não sabe tomar nenhuma decisão sozinha…”
(O pai dá um passo para trás e volta para a cena)
– Vamos, fiquem mais para a direita.
(Todos se deslocam um pouco. Pai repete a ordem)
– Ainda não está bom, mais para a direita!
(Mãe, impaciente)
– Mas tem uma pessoa ali, por que nós não vamos mais para a esquerda?
(Pai, irritado)
– Ah, Tereza, pare de retrucar! Vou te dar uns tabefes.
(Marta, a filha que sempre tenta apaziguar os ânimos, intervém)
– Tem uma pessoa à esquerda também, mamãe.
(Marta vem um passo para frente e fala voltada para o público) “Vamos tirar essa foto logo e ir embora…a mãe não sabe que não adianta teimar com o pai. É fazer o que ele fala e assim temos paz.”
(Narrador) A moça não entendia a mãe sempre retrucando e a irmã namoradeira, que apanhava porque namorava.
(Marta – voltada para o público) “Se o pai proibiu de namorar até os 18 não namore. Mas não, a mana saía escondido. E quando o pai descobriu, imagine! Se a mãe apanha só de questionar…se o Junior apanha porque bebeu coca-cola da geladeira, a coca-cola que está ali só para a cuba libre…se eu apanho porque derrubei o quadro da bicicleta recém-pintada, imagine a Rosa quando chegou de madrugada e encontrou o pai esperando por ela no escuro. Apanhou, de cinta, ela , a mãe por não vigiar, eu porque provavelmente sabia…seria bom ter um dia em paz em família, para variar, o pai querer tirar foto, tire!!!”
( O pai, nervoso, mas argumenta)
– É, é. Tem um homem de cada lado, Tereza, já que você se incomoda com estranhos. (Volta a olhar pelo vidro traseiro da speed graphic e fala, mais para si mesmo) “A Volkswagen tem que sair na foto…” (levanta a cabeça da câmera e olha para a fábrica e rodovia à sua frente, sonhando alto) “… esta Volks que pariu este mar de carro que está ao lado dela. É isso, é a mãe com os filhos, e a rodovia e o viaduto é este parque para os filhos. Esta cidade cresce e eu vou crescer com ela. Hoje tenho um negocinho no fundo de casa, todos começam assim. Amanhã terei até filiais.” (Volta a argumentar com a esposa) – E à esquerda eu não enquadro a Volkswagen e o foco seria o lado da rodovia sem trânsito.
(O menino olha para o lado da rodovia com quase nenhum carro, intrigado. Dá um passo para frente e fala voltado para o público, algo que é mais uma reflexão) “Mas lá não é a esquerda, é da mão que escreve, a direita.” (pequena pausa) Então é ali que está a praia? Pai falou que pra chegar na praia tem que sair da estrada à esquerda…” (menino dá um passo para trás voltando para a cena)
– Pai, a esquerda muda de lugar?
( Na espera pela decisão de onde ficar e na pouca importância que dão ao que o menino fala, por três minutos ninguém responde. Até que Marta se põe a explicar)
– O pai tá falando da esquerda dele, a esquerda da foto, não da sua, pra você é a direita mesmo…
(O pai se intromete)
– Marta, o menino sabe a diferença, você não tem que dar atenção à marra de moleque… Vamos, todos um pouco mais para a direita!
(O homem da esquerda – da esquerda da futura foto- está de costas para todos, levemente encurvado sobre o parapeito, olhando para baixo, para a rodovia, de forma pensativa, fumando um cigarro, nem se deu conta da família da foto. Parou um pouco para descansar antes de retomar a caminhada a pé da volta para casa. Pensa consigo) “Que canseira! Mas quando tiver trabalhando terei dinheiro para condução. Vai ser bom ter algum depois de tanto tempo. Ver se ter vindo pra cidade vale a pena. Se o cunhado tiver certo, não vou precisar tirar do ordenado o dinheiro da condução…ele disse que a empresa tem ônibus dela pra buscar os funcionários! Tem graça até, na roça ônibus da empreita é o pau de arara. Mas se for isso mesmo, vixe, se for isso mesmo dá pra guardar muito dinheiro. Quem sabe, dá até pra comprar um desses fuscas até o fim do ano. Trabalhar na fábrica deve dar desconto pra comprar um, deve dar, deve dar sim.”
(O homem da direita, de camisa aberta no 1º e último botão e postura displicente, apoia-se com os dois antebraços sobre o guarda-corpo da via e diverte-se com a situação, que o distrai de pensar que “certa mulher” está atrasada.) “Que que esse povo tem com fábrica, com viaduto pra achar tudo tão bonito? Bonito é os meus cavalos no páreo. Bonita é o broto que está pra chegar….Bom era esse povo tirar essa foto logo, vai que vão tirar foto de tudo mesmo e o broto aparece…não é boa ideia que ande por aí uma foto minha com ela..”
(O pai dá ordens)
– Marta e Rosa, fiquem à esquerda do homem. Tereza e Júnior ficam onde estão.
(O menino começa a descascar a tinta do ferro do parapeito. A mãe não se contém, de novo)
– Mas o homem vai aparecer na nossa foto?
(Pai) – Sim, (diverte-se) vai ter essa honra.
(O tal homem não se mexe porque pensa ser seu direito.)
(Atrapalhando o grande momento, o cão impacienta-se e começa a ganir mais alto, arranhando o porta-malas por dentro.) “Quero sair! Quero sair! Cadê a Má? Quero sair!”
(As filhas se condoem, falam em uníssono)
– Coitado do Dick!
(O pai, cada vez mais impaciente, ordena)
– Vocês duas, vão pegar o cachorro!
(Elas vão em direção a Kombi.)
(Narrador) Rosa se diverte. Adora tudo que acontece que atrapalha os planos do pai e que ele não pode reprimir.
(Rosa, voltada para o público) “Ele não vai bater no cachorro!!” (ajuda a irmã a abrir a porta e acalmar o animal, a irmã tem o cachorro no colo, ela vem até a ponta do palco e continua falando voltada para o público) “O pai se acha muito esperto, muito inteligente, o que ele tem é força e manda na mãe que é tonta e não pode ir embora. Na verdade, o pai é ridículo. Ele pinta bicicletas no quintal de casa e se acha um grande industrial! A gente não tem mais dinheiro pra roupa, pra um doce, a coca-cola de casa é só dele. Não temos mais paz, tem que ajudar de domingo no serviço, com ele nos acordando às 7h NUM DOMINGO. Por que, na casa dele, ‘Quem não trabalha, não come’. Se o serviço sai errado, apanhamos. Aliás, apanhamos por tudo, até para respirar. Mas teremos, claro, no futuro, grandes retornos para todos na grande empresa ‘Antônio e família’. O meu futuro eu já sei, o Pedro me adora, é um bom rapaz, trabalhador, já pulei muro de madrugada, entrei no quarto dele para ser mulher dele, aí a gente tinha que casar, que casar e fugir! Fugir! Mas ele não quis, tem hora que o Pedro é direito demais…” (volta para a cena e ajuda com o cão)
(Liberto, o animal lambe as meninas de felicidade!) “Oi Má, oi Rô! Obrigado! Obrigado! Obrigado! Obrigado!… … É isto que é praia?”
( Pai, não mais contendo a impaciência)
– Agora voltem todos para o lugar. Tereza, solta esse menino! Júnior se você correr você apanha! Rosa, Marta segurem o Dick direito!
(Narrador) E a foto foi tirada.