( Cena que fez parte da leitura dramática de 22 de novembro de 2016 da Mostra de Processo do Núcleo de Dramaturgia do CLAC – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, que hoje não existe mais, pois a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores.
Esta cena foi escrita dentro da proposta da dramaturga e professora Solange Dias de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Porém, como, hoje, o Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo não existe. Este e outros projetos se perderam.)
Não na cabeça, nas mãos, o quepe dançava. Amarelo pálido como o resto do uniforme. Amarelo pálido como os raios de sol que vencem a névoa. Tinha a função de barrar estas irradiações. Mas alguns objetos são como pessoas, extrapolam as funções esperadas. O quepe, excelente dançarino! O sol de janeiro também é ardido na cidade da neblina, mas o rapaz não se importava, preferia o movimento. Em suas mãos, qualquer coisa dançava.
CARTEIRO
“ Universal
sal
nível
unir… …universo não dá, não tem O
nu
nua
vi
ver
ali
irá
ler”
CARTEIRO
“Warner
ar
ré
erra
arre!
W é letra dura, sem gingado…
na? né ?
Palavra chata que não dança, fica no canto do baile como moça soberba que não aceita nenhum par.”
CARTEIRO (interpela passante)
“Ô moço, por favor…onde é a rua Tietê? Já andei tudo por aqui e não achei.”
HOMEM
“ Ué, carteiro que não sabe as ruas?”
CARTEIRO
“ É meu segundo mês, moço, e eu não fazia este bairro.”
HOMEM
“ Qual a rua?”
CARTEIRO
“ Tietê.”
HOMEM
“Por aqui não tem nenhuma rua com este nome não.”
CARTEIRO
“ Mas separaram esta carta aqui da Tietê neste malote…o senhor é do bairro?”
HOMEM
“ Sou. Sei do que estou falando. Moro uma quadra acima daquela praça, na…
CARTEIRO
(interrompe)
(pronuncia em português) “ Na Universal?”
HOMEM
(pronuncia em inglês de Universal)
“É…na Universal… Aqui não tem nenhuma rua Tietê.”
(Uma mulher aparece carregando sacola de feira com compras de mercearia, ouve a conversa e corrige)
MULHER
“ Ô homem de Deus, não fale besteira, e a Tietê não fica logo ali?”
HOMEM
“ Como? Não!”
MULHER
“E eu não moro nela?” Logo ali”
(A mulher fala andando, o carteiro, interessado, e o homem, intrigado, a seguem até a esquina)
MULHER
“ É aqui, qual é o número que você precisa?”
Para a existência garantir, precisamos de números e precisamos de nomes. As casas tinham números e a rua tinha um nome. Exibida na esquina, a placa era a certidão de nascimento. Amassada como nenhuma outra, mais amarrotada que papel ordinário. Entre as marcas das pedradas no ferro podia-se ler um T e um E, mas também um W e um Y.
HOMEM
“Mas ali não está escrito Tietê!”
CARTEIRO
(lendo devagar) “T w e n t y. Twenty. Essa com certeza não samba!”
MULHER
“Sei ler, não. Pra mim não faz diferença o que está escrito. O que eu sei é que esta aqui é a rua Tietê, sim senhor.”
HOMEM
“Povo ignorante! Essa é a rua Twenty! Olha só o nome das outras… Warner, Paramount, Universal. Olha o nome do bairro: Jardim Hollywood. As ruas são nomes de estúdio de cinema. Essa é a rua da Twenty Century Fox, meu favorito aliás.
CARTEIRO
(pergunta ao mesmo tempo que mulher fala) “Gosta de cinema?”
MULHER
(fala ao mesmo tempo que homem responde) “Rua o quê? Tue..”
HOMEM
(responde ao mesmo tempo que mulher tenta imitar som) “Muito, sou um cinéfilo. Você não?”
MULHER
(finaliza ao mesmo tempo que carteiro replica) “sem foz? O que é isso?”
CARTEIRO
“Acho caro.”
HOMEM
“Twenty Century Fox , mulher, é o grande estúdio de cinema americano, lá de Hollywood, sabe Hollywood? O nome significa ‘além do século vinte’. O nome do bairro e das ruas homenageiam Hollywood.”
MULHER
“ Roliúdi!!!” (se vira para o carteiro) “O que você acha disso?”
CARTEIRO
“ Difícil, com W, Y não se sai do lugar… H é letra que precisa de ajuda pra rodar.”
MULHER
“Rodar…quem roda é a gente, rua da gente tem que ser na língua da gente, (petulante) bairro com nome de estúdio de cinema dos states! quem decidiu isso? Essas coisas com nome estrangeiro, não orna.”
CARTEIRO
“Olha, acho que a senhora está certa, o Roliúdi daqui é com R, O , L, I , U , D e I e acento no u”
HOMEM
“Eita, não olhem pra mim, eu só li e expliquei o que estava escrito!”
O carteiro, precisando cumprir seu ofício, entrelaçou o número da carta às letras da conversa e achou a moradora destinatária de tão polêmica correspondência. Como teve muito que perguntar “É a senhora a senhora Joana Ribeiro? Que espera notícias de São José do Rio Pardo?”Com o sim, sim, ganhou café e bolo. Missão cumprida. Endereço certo é o do caminho que acha o seu destino.
MULHER
“Destino da gente é a gente que faz.”
Como as pedradas dos moleques foram esburacando, e não era mais quase possível ler o W ou o Y, para quem lia. Como as incisivas vogais foram matando, e não era mais possível ouvir som estrangeiro, para quem o distinguia. Aquela ficou sendo a rua Tietê e pronto.
CARTEIRO
“Voz do povo é voz de Deus.”
A tábua divina apareceu em forma de placa com todas as letras de Tietê, sem faltar e sem sobrar nenhuma, registrando no civil o nome que a saliva do povo já tinha ungido em batizado.