Era uma tarde tranquila, um dia tranquilo, um dia comum.
Era o 10º andar do Condomínio Tiradentes, na avenida de mesmo nome.
Era uma mãe e uma criança em casa, em um simples final de tarde.
Uma tarde de muito calor.
Um anjinho: bebê dormindo no berço, ao lado da janela.
A mãe via televisão. Um começo de noite calmo, normal, rotineiro.
Rotina de dia de verão, todas as janelas do apartamento abertas. O calor era constante e intenso.
Ao fim da novela das seis, a mãe vai ao quarto da criança. Não está no berço. Onde estaria?
Como fora possível não ouvir o choro impaciente de quem acorda e quer atenção? Ou não ouvir as felizes exclamações de quem se aventurava em escapar do espaço que lhe é reservado? Como foi possível não ouvir os ruídos dos passinhos hesitantes que se aventuram pelo ambiente?
A mãe passa a procurar por todos os cômodos do apartamento. Primeiro, com nervosismo ainda controlado, a falta de ruído indicava mais grande apronto que grande problema.
Busca primeiro no próprio quarto infantil os locais já usados de esconderijo. O baú de brinquedos, o armário. Lembrando-se das vezes em que já encontrou o anjinho escondido pela tampa recurvada, no meio de bichinhos de pelúcia, as perninhas apoiadas em bloquinhos de montar, ou ainda, fechado atrás da porta entreaberta do outro móvel, fazendo de almofadas o estoque de fraldas.
A janela aberta, encostada no berço. Baú vazio de criança. As fraldas do armário nada escondiam. A janela aberta.
A mãe então foi ao quarto de casal, ao lado. Recordando outras travessuras. A criaturinha mal sabia andar, mal sabia pronunciar as primeiras palavras, mas já sabia ultrapassar barreiras, se espreitar por entre as roupas penduradas, alguns sapatos servindo de assento, outros, como luvas, a curiosas mãozinhas enquanto o nariz se divertia com o contato suave no pano das peças tão sufocadamente arrumadas em cabideiro tão pequeno. Ah o cabideiro! quase veio abaixo uma vez quando as mãozinhas desejaram conhecer o detalhe brilhante de um vestido.
Mas, dessa vez, as roupas estavam intocadas, o closet não havia sido violado.
A janela aberta.
Lembrou-se do banheiro. Na última ocasião em que houve grande silêncio, quando descobriu que o chiqueirinho não é um espaço inviolável para os menores, encontrou o projeto de gente divertindo-se em picotar tufos de papel higiênico e jogá-los na privada. Grande apronto. Para a mãe, claro, mães só enxergam a economia doméstica e não o infantil experimento científico.
Nada, nada mesmo. O banheiro estava impecável, como o tinha deixado após limpeza do dia.
A janela, aberta.
Começou a andar a esmo pelo apartamento, a olhar nos locais mais improváveis. Atrás do cômodo da TV nem há como entrar, mas olhou lá mesmo assim.
A janela? Aberta…
Foi até a cozinha. O armário embaixo da pia também era local de preferência da travessa criança, que se divertia com as panelas. Mas ela não teria ouvido o barulho do alumínio feito de tambor e das tampas rodopiando no piso? Sim, teria, mas foi conferir assim mesmo.
Voltou ao quarto de bebê, procurou de novo no baú e no armário. Olhou de novo o berço, fechou a janela. A chuva repentina já havia molhado bem o travesseirinho e o lençol.
De novo foi ao seu quarto, lembrando da vez que o anjinho se esgueirou por debaixo da cama e lá adormeceu, como bebê urso que hiberna na sua caverna. Foi um dia inclusive que causou grande susto, como hoje.
Mas não havia ninguém embaixo da cama.
A janela?
Deu mais duas voltas pelo apartamento. Sufocada, voltou a abrir as janelas. Até a do quarto de bebê, a chuva de verão já havia passado.
Em nenhum momento lhe ocorreu olhar pela janela.
Toca o interfone, o porteiro avisando da ida dos bombeiros ao apartamento. Não tinha tempo para atender ninguém, o que afinal iam querer os bombeiros? Nova inspeção do gás encanado do prédio? A essa hora? Não tinha tempo nem cabeça para atender ninguém. Afinal, ainda não havia encontrado sua criança e estava começando a ficar nervosa, muito nervosa.
O bombeiro vinha comunicar sobre o corpo.
O anjinho.
(Novembro 2013)
(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)