Aprendizagens

Minha avó paterna sempre perguntava quando eu iria fazer o catecismo.

Na época, minha única relação com a Igreja era o som tênue dos sinos da Matriz que chegava à minha casa. Meu pai tinha sido católico praticante até casar. Minha mãe era espiritualizada, mas não tinha tido nem uma criação tradicional católica nem o desejo de desenvolvê-la.

A insistência da minha vó criou em mim uma segunda relação com a cristandade. Assim que chegávamos na casa da minha tia, com quem ela morava, assim que ela me via junto a minha mãe, questionava: “Essa menina já está fazendo o catecismo?”.

Parecia algo muito importante. Minha avó, cuja memória já se dissipava, que andava chamando as filhas pelos nomes das irmãs, que por vezes não se lembrava quem eu era ou quem meus primos eram, tinha, nessas visitas, rompantes de lucidez em que ela me reconhecia como filha do seu único filho homem, em idade apropriada para os primeiros estudos religiosos e cobrava a minha mãe: “Quando esta menina vai fazer o catecismo?”

Não me lembro como surgiu o assunto entre minha mãe e eu, acho que ela me perguntou, talvez meu pai tenha cobrado também. Mas sei que minha mãe deixou à minha escolha fazer o catecismo ou não. Eu quis. Tinha curiosidade. E dadas as constantes investidas da minha vó, parecia uma experiência  muito importante que eu estava deixando de viver.

Lembro que eu fiz questão de que a igreja fosse a Matriz, apesar da igreja do Baeta ser bem mais perto da minha casa. Queria a tradição, queria a principal da cidade. Queria a Igreja em que meus pais se casaram. Queria entender porque, apesar de ter o nome de Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, aquela não ser a paróquia original, de quando a cidade era ponto de parada para os viajantes que seguiam para São Paulo ou Santos. Pista de alguém já mais inclinada à história que à religião.

Minha mãe não se opôs. Quando ela e eu fomos fazer a matrícula, não havia mais vagas para aquele ano. Eu teria que esperar o próximo. Assim, comecei o curso com 11 anos. Era a mais velha da turma. Não sei se isso foi o que fez a diferença.

Debati muito com minhas catequistas. Pessoas boníssimas, mas que eu considerava estarem  me negando algo. Não entendi como Caim, após ter matado Abel, pôde ter povoado o mundo com seus filhos. Com que esposa, se além dele só Adão e Eva estavam no mundo? Entrava no carro e questionava a minha mãe, ela só dizia, num suspiro, para eu ter paciência e tirar as dúvidas com a catequista.

 

No ano seguinte, já no início da minha adolescência e com uma catequista mais rigorosa nos ensinamentos, o embate se agravou. Não entendia a Santíssima Trindade de jeito nenhum e gostaria que me explicasse, afinal, as professoras e minha mãe sempre me explicavam tudo e eu era aluna atenta e esperta.

Ela então começou a contar uma parábola para me explicar a Trindade. Eu me preparei muito feliz para ouvi-la. “Conta-se que Santo Agostinho estava andando na praia quando viu um menininho fazendo um buraco na areia, à beira do mar. O santo perguntou o que o menino estava fazendo e a criança respondeu que estava cavando um buraco em que coubesse toda a água do mar. Santo Agostinho riu, disse à criança que era impossível que toda a água do mar coubesse naquele buraquinho. A criança se transformou e se revelou como Jesus e ensinou a Agostinho que era mais fácil toda a água do mar entrar naquele vão do que o mistério da Santíssima Trindade entrar na cabeça dele ou de qualquer outro ser humano.”

Eu fiquei com muita raiva dessa história. História que não explica. História que serve pra dizer que você não é capaz de entender nada ( e eu que já tinha um quê renascentista). Eu não sabia que estava aprendendo na prática o que é dogma. Achava que era a professora que não queria explicar. E fiquei com raiva da catequista.

Mas chegava no domingo eu tinha dó dela. Na missa das crianças, do espaço reservado para as professoras de religião e seus alunos, via o marido da minha catequista cuspir no chão da Igreja. Via-o resmungar impropérios durante toda a celebração da Eucaristia. Via-o escarrar no solo que a esposa tanto respeitava. Eu não entendia.

Não entendia ela estar casada com ele. Não entendia porque ele estava ali, se não acreditava. Não entendia a hipocrisia. Mas fui aprendendo aos poucos.

Gostei muito de outras aprendizagens. A mais produtiva foi uma visita à igreja, com todas as suas imagens e objetos sendo explicadas. Entendi que as pinturas nas paredes representavam as etapas da paixão de Cristo. Aprendi o “outro” significado de paixão. Mostraram onde ficava a hóstia antes da consagração e o nome que ela tem, porque só é hóstia quando é corpo de Cristo. Explicaram cada parte do altar. Mostraram as roupas do padre e as diferentes ocasiões de uso destas. Mostraram os confessionários antigos. Vimos o sino!

Explicaram que não era necessário beijar o dedo, após fazer o sinal da cruz. Mas eu continuava beijando, pois tinha sido assim que minha avó tinha me ensinado. Mesmo que minha vó não soubesse disso, pois já não entendia mais do mundo bem antes de quando, finalmente, comunguei a primeira vez.

Uma vez, acho que era o mês de Maria, a catequista pediu que nós fizéssemos um texto sobre a Virgem. Eu já tinha começado a enveredar pelo caminho da poesia e decidi fazer um poema.

Naqueles versos coloquei tudo que tinha entendido que era considerado importante: a resignação de Maria à sua missão, a importância da chegada do filho de Deus, o nosso reconhecimento e a nossa submissão à grandiosidade da Virgem. E fiz umas rimas, umas metáforas interessantes. Gostei muito de fazê-lo.

A catequista adorou, leu para a classe, mostrou a uma colega. E eu, ficando sem graça…

Fiquei sem jeito pois  não sabia lidar com aquele novo aprendizado.

Além de aprender a achar trechos na Bíblia, a via sacra, os sacramentos, a salve-rainha, a rezar o terço, as músicas. E além de aprender dogma e hipocrisia, eu estava aprendendo o cinismo.

O poema fez tanto sucesso que eu fui escolhida como oradora, no dia da primeira comunhão. E deveria ler o meu poema! Mas eu continuava incomodava.

Era o primeiro evento importante em que eu falaria em público. E, pela primeira vez, (antes sempre tímida), eu me sentia preparada. Queria aquilo, mas me sentia culpada.

Li bem, fui elogiada.

Foi a primeira vez em que eu fui cínica.

Aquele texto lido com tanto orgulho no púlpito da Igreja Matriz, aquele poema à Virgem declamado no dia da minha primeira comunhão, toda minha oratória, era pura devoção, era mesmo, pura devoção…

Pura devoção à poesia.

(Novembro 2013)

(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)

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