Aquilo que está certo

( Cena escrita em maio de 2016 no Núcleo de Estudos Cênicos  do CLAC  – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, que hoje não existe mais, pois a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores.

 

Esta cena foi resultado de um exercício de observação da praça São José e arredores do bairro Baeta Neves, como parte do processo de escrita dentro do projeto de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade, proposta da dramaturga e professora Solange Dias. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Como não há mais CLAC, este e outros projetos se perderam.

 

Uma das propostas do Núcleo de Estudos Cênicos era “escrever nas terças e encenar nas quartas”, eu demorei um pouco para entender o que o Miguel Prata estava querendo com nossos textos, e que não saberei explicar aqui, por ignorância ao termos técnicos teatrais. Mas basicamente, a carta da Mari que era super doce ele propunha “Mari, você vai ler esta carta bem devagar, passando o lápis por cima de cada letra, como se estivesse escrevendo e falando”. O texto da Gabi, que tinha uma personagem que falava de acumular ou não as coisas, ele propôs que ela fizesse sempre pegando um novo objeto, e lá foi a Gabi, falando duas frases e pegando um sapato, mais duas frases e segura três rolos de papel higiênico, três frases e pega blusa, quadrado de EVA. Gabi tinha que equilibrar a memória e as quinquilharias. E por aí vai, a Tati teve que falar seu texto arrumando um varal, buscando e arrumando cadeiras.

 

A proposta com o meu texto era que eu o lesse andando sem parar pelo espaço. Como eu eventualmente parava, Miguel se colocou atrás de mim, me pressionando para que eu continuasse. Minha primeira reação foi dar gargalhadas porque é muito estranho andar com alguém te empurrando continuamente, no momento que entendi e peguei o ritmo, ele me largou. Quando completamente exausta de dar voltas, Miguel me incentivava, “Continua daí, usa a exaustão!” e eu continuava, “Isso, continua com essa voz!”, e eu pensava “Que voz?”, não tinha percebido que minha voz estava completamente diferente. Colegas e professor diziam “Nossa, eu vi um homem aí”, “E ela não forçou a barra para ser um homem”. Eu não estava entendendo muito não “Como vocês viram um homem? Eu não mudei de roupa, não prendi o cabelo…”.

 

A epifania ali foi de aprender que meu corpo muda um texto. É meio bobo dizer isso porque atores são isso, corpos que imprimem sentidos a um texto. O principal, na verdade, foi perceber que o MEU CORPO era capaz de adicionar camadas de sentidos a um texto. Justo eu, tão acostumada a escarafunchar sentidos com as palavras e apenas com as palavras.)

 

 

Aquilo que está certo

 

“Eu acho que tá certo sim. Tá certo porque ia melhorar muito aqui pra gente. Larga de ser assim, homem, e perceba. Ia melhorar sim, pra começar não ia ter esse monte de merda de cachorro espalhada por tudo que é lado, as pessoas iam ter que olhar seus bichos, recolher o cocozinho…Sua vez.”

“Cachorro de rua não ia entrar, ué.”

“Mas o melhor é que não ia ter esse povo sujo largado por aí. Dormindo em banco da praça….bêbado. Praça não é pra isso.”

“Tô te dizendo que ia melhorar porque a Igreja ia ter mais paz. Não ia precisar ter cachorro de raça…”

“Como eu sei que é de raça, ora um bicho desses, esqueci o nome…mas um bicho desses custa 7 mil reais. Mas não me interrompe, homem e joga que é sua vez de novo…”

“Então, sabe o bazar beneficente? Esse povo aí já entrou e pegou coisa. É pegaram sim. Pegaram uma toalha e a folhinha do dízimo.. o o calendário… Roubaram mesmo. E ficam espalhando essas coisas aí, sujando a praça. A toalha tá lá, no gramado. E o bazar acontece cedo, de manhazinha… e termina umas três, quatro. Mas vagabundo pra roubar não tem horário.”

“Não eu não vi, mas me contaram…e foi depois disso que a Igreja passou a ter os cachorros. ”

“Você é muito burro, não é questão de pegar ou não a toalha de volta. É esses marginais aí achando que podem ficar vagabundando e achando que pode pegar as coisas na Igreja. E quem ia querer de volta uma toalha imunda, usada por essa gente porca? E sabe onde tá esse calendário? Pregado numa árvore. Isso eu vi. Tava aí com meu dálmata e ele deu uma corrida, me deu uma canseira e parou para fazer seu xixizinho numa árvore de tronco grosso, fui encostar, num bate um negócio na minha cabeça? Fui ver, era a folhinha…Vê se pode a sagrada família pregada numa árvore? Que sacrilégio…Com guarda não ia ter nada disso aí.”

“Eu sei o que o Pedro pensa…olha eu gosto muito do Pedro, gosto mesmo, conheço ele há mais de vinte anos, eu era moleque e o Pedro vinha ensinar  a gente a fazer pipa, o Pedro sempre gostou de ficar com as crianças…mas o Pedro é um velho ingênuo. Ele acha que vive no tempo de antigamente, de cidade pequena em que as coisas eram calmas. O Pedro não tem noção, fica todo dia na praça perto dos mendigos…até conversava com eles! Ele não gosta que assim a praça vai ter horário pra fechar, claro que vai ter horário pra fechar, guarda tem família tem hora de embora, aí eles trancam o portão e acabou o expediente deles. Porque se não trancar o portão também não vai adiantar ter portão, os mendigo vai entrar no mesmo jeito.Olha tem até que tomar cuidado pra ver se eles não vão pular o portão pra dormir…bom, mas aí a policia vem de manhã dá uma coça neles…Se os guardas fechar às 18h, qual o problema? O Pedro já fica a manhã e tarde toda na praça para quê mais?… Olha a gente aqui por exemplo, jogando o nosso xadrezinho, se a praça ficar aberta das 8h às 18h pra quê mais? Cê precisa jogar xadrez fora desse horário? eu também não. E se precisar, compra um tabuleiro e leva pra casa que este não dá porque é grudado no cimento haha. O que esse velho fica fazendo fora de casa o dia todo? Tinha mais que ficar em casa olhando melhor a neta dele, essa menina, vou te contar, fica aí andando pra cá em prá lá de vestido curto, atravessando o bairro todo para ir pra casa de vizinha. Pra fazer o quê? Em vez de ficar em casa ajudando mãe no almoço, fica perambulando por aí, boa coisa não tá fazendo. Aí tem hora que ela arrasta o irmão junto, pra disfarçar que faz alguma coisa. Quando eles estão na praça, o Pedro chama os netos e eles não vem, vê se pode! se fosse neto meu e neta minha, eu chamava, vinha na hora, que falta de respeito! … Vai ser bom pro Pedro também, pra sair dessa praça e ir botar autoridade nos netos….. As pessoas não tem noção. Outro dia uma mulher não parou o carro pra pedir informação pros mendigo?  Olha o perigo! Com os guardas aqui ia ter mais segurança. A gente ia ter tranquilidade”

“Você acha que tá tudo tranquilo porque não presta atenção. Esta tranquilidade aqui é de mentira porque não tem segurança…Os mendigo tão tudo lá do outro lado, com aquele monte de garrafa… … e daí que é de catchup, praça também não é lugar de ficar espalhando comida.. e esse monte de cachorro perdido que pode morder qualquer um? Esse povo aí que tá sentado… o Pedro lá… tudo sem noção do perigo. Não é porque tem mais árvore que gente que não tem perigo. Certa mesmo é a caseira da Igreja que tranca o portão depois da missa e só abre pro pessoal que trabalha lá….Eu sei por causa do movimento da padaria, ia aumentar se tivesse segurança. As pessoas não vão lá almoçar por que não tem segurança. Aí outro dia me apareceu um sujeito Vê se pode, 11h45 da manhã o cara senta fica parado um tempão e só pede um cafezinho.Fui lá perguntar se ele não ia almoçar…tava ali sem fazer nada.. É esse povo do teatro que não tem dinheiro, eu sei porque eu já vi esse cara chegando lá… CLAC o que quer dizer isso? Se a gente tivesse segurança o faturamento da padaria ia melhorar, ia aparecer clientela que vai realmente consumir…Tô pensando agora, tem que tomar cuidado pros mendigo não sair da praça e ir ficar no teatro, esse povo d-a-s a-r-t-e-s também não tem noção, tem umas ideia torta, deixa os mendigos ficar lá na porta..faz cada uma… outro dia não tô saindo de casa, e eu sempre pego aquele pedacinho ali que é contramão…minha casa tá a 200m da rua que eu vou descer, tem só um pedacinho contramão. Vou dar a volta inteira na praça, cê acha? Pego só aquele pedacinho ali, não acontece nada, não tem ninguém…quase não tem carro aqui. E não é que tinha uma menina tirando foto com o celular num dia que eu tava saindo? Fui falar com ela, perguntei se ela era do trânsito, dei uma de joão-sem-braço, ela era muito novinha pra ser fiscal…disse que não sabia que a  rua era contramão e que tinha entrado sem querer, ela foi e falou que era do teatro e tirava foto pra uma pesquisa do bairro…cê acredita?, isso é baela, é esse povo que não tem nada o que fazer e fica olhando a vida dos outros e fica colocando foto de carro com a placa na internet. Cê nunca viu?  Povo fica colocando foto na internet de carro que para nessas vagas aí, de idoso, de deficiente, vai cuidar da sua vida! Se em ônibus ou trem não tem problema sentar nas vagas reservadas se não tem idoso ou deficiente ou mulher grávida ali porque cismaram com as vagas de carro…bom, eu acho que a menina acreditou em mim porque não apareceu foto do meu carro em lugar nenhum… … o bom  é que esse povo do teatro não vota, mendigo também não, não é morador de bairro…quem mora na rua não é morador de bairro.. não vota…então amanhã na Associação eu acho que vai passar sim e tá certo, a maioria é a favor, porque a maioria é gente de bem, tem que cercar a praça sim, por guarda… vou te falar, pessoal de bem que é a favor de cercar e por guarda na praça, quem é contra é pessoa que não tem a vida muito certa não.”

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