O volume

Eu tenho lutado muito contra essa sua treinada indiferença, espécie pior que a indiferença natural. Antes eu tentava mostrar como suas atitudes me magoavam, certa de que você não percebia. Afinal, a indiferença é a insensibilidade ao que o outro precisa. É a roupa do egoísmo.

Não é fácil entender as necessidades alheias. Sair do fazer para si para amparar o outro, isto é amor. A mãe que tira do seu prato para alimentar o filho. Aquele que esquece o próprio ferimento para resgatar alguém dos escombros. Mas nem é preciso sacrifícios tão grandes. Aquele que não lê, mas presenteia com Saramago e a dona de casa impecável que permite a brincadeira no meio da sala (e com os lençóis novinhos!) também amam.

Agora, depois de compreender que você não consegue me dar isso (nem o Saramago ou lençóis novos) eu queria entender porque as minhas necessidades te incomodam. Eu, que não espero mais que você as preveja; eu que, a você, as explico. Afinal, só precisava que você abaixasse um pouco o volume da TV.

Eu consegui bolsa, seu salário não paga meu curso. As camisas estão passadas e a louça lavada. Não estou mais contando das minhas aulas, já que isso te irrita. Eu fecho a porta do quarto para estudar e você vê TV. Você assiste nesse volume absurdo. Eu já pedi pra você diminuir o volume sobre mim. Você resmunga e não diminui.

Eu fiz arranjo no serviço para trabalhar meio período e estudar de manhã, pois meu retorno meia-noite te incomodava. Deixo o menino na minha mãe aos sábados, já que você “Merece descanso e não vai ficar olhando criança enquanto eu estou folgada.” Folga eu não tenho nenhuma, mas fico quieta. E quieta fico porque quero paz. A paz não vem.

Não há criança em casa nesta tarde, fora de lugar há apenas o tênis que você deixou na sala. Você vê TV e eu tento estudar. Eu me fecho e uso tampões, pois agora sei que você não vai diminuir esse volume opressivo.

Onde eu errei para não merecer de você o silêncio da TV ou a luz acesa de manhã?

Se levanto às 5h da manhã para estudar – já que de noite tenho afazeres domésticos –você brada contra a luz acesa na cozinha, que te atrapalha o sono. Mesmo com a porta fechada, mesmo a cozinha estando tão longe do quarto.

Nunca esperei flores ou grandes jantares, eu só queria que você me desse silêncio.

Nas vezes maravilhosas em que você não está em casa, quando eu não preciso me privar da companhia do nosso filho para estudar, ele também vê TV.

Ele, só oito anos, abaixa o volume da TV. Você não diminui seu volume.

(Escrito em julho de 2012. Revisado e alterado em junho de 2017 para participar da coletânea do prosa do Mulherio das Letras 2017.)

Para a nova situação

Prova de amor maior desconheço. Até tínhamos terreno baldio perto da casa, logo na esquina, mas usá-lo para os treinamentos atrairia a atenção dos vizinhos. Então meu pai, ele mesmo, picaretou o quintal desfazendo camadas e camadas de cimento duro, há anos assentado, para fazer brotar terra.

E foram vários dias desse esforço, meu pai chegava do trabalho e debaixo de luz amarela fraca desfazia o concreto em pedaços até o horário que a tolerância ao barulho permitia. E já era um ritual dizer aos vizinhos que o piso precisou ser quebrado por necessidade de dreno. E já era um ritual dizer aos vizinhos que meu irmão estava morando com uma tia.

E era preciso porque a umidade subia da terra e crescia pelas paredes fazendo nascer pelas cascas da tinta expulsa grossos musgos e até cogumelo. E foi preciso porque meu irmão passou em prova concorrida de curso técnico da capital e não tinha condições dele ficar indo e voltando.

Como o problema era comum a todos da vizinhança, ninguém duvidou. Chegaram até a convidar meu pai para resolver o mesmo problema em suas casas. Como meu irmão sempre foi rapaz trabalhador e estudioso, ninguém duvidou. Só queriam saber quando ele vinha, para cumprimentar. E meu pai em falsas promessas e falsos fatos falava que quando terminasse de solucionar nosso terreno faria gosto em solucionar o vizinho, Mas ele esteve aí ainda este sábado, a senhora não viu não?

E eu queria ajudar, mas pai dizia que era lida muito pesada para menino. Meu irmão podia ajudar, já que aguentava dez vezes o seu peso, mas mesmo de madrugada meu pai temia que ele fosse visto despejando o entulho na caçamba alugada que esperava na calçada da casa. Então era o pai sozinho que recortava, recolhia e descartava os pedaços do nosso quintal.

Minha mãe não teve o mesmo pudor quando pediu ao mano que ele carregasse o beliche para a rua, o que ele fez com gosto de ajudar, mas não sem certa melancolia por não poder mais dormir ali. Pai ralhou. Foi às duas da manhã, ninguém viu! Mas pai estava também chateado com a desfaçatez, Ir se livrando das coisas do menino assim! Minha mãe era muito prática, argumentava que já devíamos ir arrumando tudo “para a nova situação”, que era o que ele já estava fazendo no quintal, além de aproveitar o fato do quarto agora ter maior espaço para uma cama só pra mim.

Eu queria um quarto só para mim, mas tinha dó do meu irmão. Ele já não falava, completamente transmutado, mas eu o entendia através dos seus olhos e antenas. Mal chegado da escola, já subia em seu dorso, versão nova da brincadeira de cavalinho. Ele não se cansava, passeávamos por dentro da casa toda, às vezes derrubando coisas. Seria um cachorro, se não fossem o tórax estreito, o abdômen bojudo e as seis patas.

E era como um cachorrinho que, quando o buraco do quintal ficou de tamanho suficiente, que ele manejava a cabeça distribuindo ao redor a terra que meu pai jogava com a pá sobre ele, aprendizado na nova espécie. A gente nem sabia se era assim, mas meu pai já estava em desespero, como uma formiga sozinha constrói seu formigueiro?

(Setembro de 2016)

Dentro e diante

Ela vai falando, falando e a outra ela ouve, às vezes não ouve, às vezes responde porque recusa o monólogo e a resposta é mal recebida com um “Não é isso, você não entendeu” estúpidos. E é muito estranho um sentimento em voz alta ter como recepção “Você não entendeu” “Não é isso”. Como a emoção de alguém pode não ser certa?

A outra ela é sempre corrigida no que sente. A boca de batom com dentes bem cuidados fala sobre o que vê, o que fez das horas, fala sobre o dia da primeira ela, e a primeira ela gosta de ouvir o que  estas bocas e dentes têm a considerar sobre o mundo e ela, a primeira, a que nunca se cala.

No momento que a outra ela deixa escapar por entre  muros as gotas coloridas que escorrem do seu olhar o “Não, não é isso” é mão que tapa a boca do sorriso e a nudez da sua alma se dobra sobre si como um corpo que não dança.

A outra ela já não tenta mais. Recorda que o seu lugar ali é o de orelha. A boca se cala e fala o esperado e o olhar se volta para campos de vegetação rasteira, de uma leve névoa, com seus chalés de inverno…ou para  a praia. A outra ela gosta muito da praia. Agora, neste momento, a primeira ela pede, de novo, que a segunda repita uma observação inteligente que esta fez do cotidiano daquela. Enquanto fala, autômato, da vida da outra, a outra ela enxerga, deantre de si, a enseada e o forte de Copacabana.

(Agosto de 2016)

Destino

Entrar.

Liberdade.

Andar.

Liberdade.

Descer.

Liberdade.

Abriu.

Liberdade.

Sentar.

Liberdade.

Voz fanhosa. Fé?

Muita gente.

Apertar.

Continua.

Cochilar.

Carandiru.

Levantar.

Carandiru.

Abriu.

Carandiru

Não sair.

Carandiru.

Tocou.

Carandiru.

“Você está atrasado…”

Sinal sonoro.

Carandiru.

“Ah você está no metrô? Tá chegando então…”

Fechou.

Carandiru.

Santana.

Jardim São Paulo.

Parada Inglesa.

Tucuruvi.

Parada Inglesa.

Jardim São Paulo.

Santana.

Carandiru.

Vibrou.

Não atender.

Portuguesa.

Armênia.

Tiradentes.

Vibrou.

Desligar.

Luz.

São Bento.

Sé ( e não fé…)

Liberdade. (liberdade?)

Cochilar.

Paraíso?

Santa Cruz. (é mais provável…)

Tiradentes Armênia  Portuguesa  Carandiru  Santana  Jardim São Paulo  Parada Inglesa Tucuruvi   Parada Inglesa   Jardim São Paulo   Santana   Carandiru   Portuguesa – Tietê (era melhor quando era só Tietê)  Armênia  Tiradentes  Luz   São Bento ( iluminação é algo que só os santos têm…)  Sé   Liberdade   São Joaquim   Vergueiro    Paraíso   Ana Rosa   Vila Mariana (por  onde anda a Mariana?) Santa Cruz  Praça da Árvore   Saúde   São Judas   Conceição   Jabaquara

Jabaquara.

ConceiçãoSãoJudasSaúdePraçadaÁrvoreSantaCruzVilaMarianaAnaRosaParaísoVergueiroSãoJoaquimLiberdadeSéSãoBentoLuzTiradentesArmêniaPortuguesaTietêCarandiruSantanaJardimSãoPauloParadaInglesaTucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasanta cruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquaraconceiçãosãojudassaúdepraçadarvoresantacruzvilamarianaanarosaparaísovergueirosãojoaquimliberdadesésãobentoluztiradentesarmêniaportuguesatietêcarandirusantanajardimsãopauloparadainglesatucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasantacruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquaraconceiçãosãojudasaúdepraçadarvoresantacruzvilamariananarosaparaísovergueirosãojoaquimliberdadesésãobentoluztiradentesarmêniaportuguesatietêcarandirusantanajardimsãopauloparadainglesatucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasantacruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquara

“este trem não prestará serviço” “atenção: este trem será recolhido” “este trem não prestará serviço” “este trem não prestará serviço” “este trem não prestará serviço” “…prestará serviço”” (prestará)

(prestará?)

“Senhor, é preciso sair, este trem não prestará serviço”

(é preciso sair)

(é preciso sair)

Sair.

O trem recolhido. Acolhido?

‘A faixa amarela é a sua segurança’

(Segurança)

(SEGURANÇA)

(Segurança???)

(o vão dos trilhos é canyon da metrópole)

{     }

(é bonito também. é sim, qualquer limite seduz…)

(limite- limiar , limiar de vida, por quê vida? é preciso sair. sair. sair da vida)

(… o limite seduz…)

{      }

(a faixa amarela é limitação, a limitação não interessa)

{     }

{    }

{    }

{  }

{}

}

Portas que se abrem.

Entrar.

Sentar.

Conceição.

São Judas.

Saúde.

Praça da Árvore.

Santa Cruz.

Vila Mariana.

Ana Rosa.

Paraíso.

Vergueiro.

São Joaquim.

Liberdade.

Levantar.

Liberdade.

Sair.

Liberdade.

Subir.

Liberdade.

Andar.

Liberdade.

Chegar.

Liberdade.

Dormir.

Liberdade.

Sonhar.

liberdade…

Acordar.

realidade.

(Junho de 2012)

  E nós?

Dessa vez começou por causa de dois cruzeiros.

Dois cruzeiros era o preço de um saco de pipoca ou da passagem de ônibus.

As meninas sabiam disso porque sempre iam a pé da escola até a casa. O pai falava que se ele andava nove quilômetros para ir à escola quando era criança, as filhas dele bem que podiam andar dois. Mas até os pais durões por vezes se condoíam e este dava 2 cruzeiros para cada uma ir de ônibus em dias frios ou de chuva. Só que as meninas, acostumadas a andar, guardavam o dinheiro para comprar pipoca. Era essa a sua grande travessura.

No caso, os dois cruzeiros eram o troco do gás. A mãe pediu ao pai o dinheiro do gás. O caminhão do gás apareceu. Ela comprou o gás, mas, na hora de ter o troco de volta, o rapaz, naquele jeito malandro simpático não deu chance “Fica pra caixinha?”, era uma pergunta retórica. A mulher ficou sem ação, não quis ser rude. Ficaria por isso mesmo.

Não ficou.

Dinheiro geralmente é um problema, mas aquela família tinha um jeito próprio de agravar os seus. Uma vez, as meninas tiveram a tarefa de ir até o mercado municipal trazer mantimentos. O pai fez a conta de quanto seria cada item da lista, somou ao gasto da condução e deu o dinheiro certo para compras e frete. Deu também o endereço do mercado: Rua Padre Lustosa, travessa da Marechal Deodoro.

O primeiro problema foi achar a rua do mercado. As meninas, como dito, sabiam andar pelo centro da cidade, chegaram até a referência indicada e leram a placa: Rua Pe Lustosa.  Ingênuas, como as crianças de 8 e 9 anos ainda são (ou deveriam ser) e o eram ainda mais na década de 60, entenderam que estavam no local errado. Andaram um tempo pelas ruas ao redor. Nervosas, não podiam demorar, o pai também contava o tempo. Até que perguntaram. Um senhor informou qual era a rua, com o adendo da explicação sobre a abreviação da palavra padre.

O segundo problema foi pagar as compras. As verduras e legumes estavam mais caros, e no caixa, as irmãs perceberam que não haveria dinheiro para pagar tudo. Decidiram usar o valor da condução como complemento e voltar pra casa a pé.

Ao chegarem, encontraram o patriarca nervoso pela demora. Quase apanharam. Como defesa, elas contaram o ocorrido e a decisão. Ele riu, riu muito, riu alto. As chamou de tontas, pois era só diminuir a quantidade de tomates ou batatas que assim teriam dinheiro para o ônibus.

Talvez tenha sido o nervoso de, primeiramente se sentirem perdidas, ou talvez a ingenuidade da  idade não permitiu que elas tivessem o raciocínio descrito. Mas será? Será que elas ousariam não trazer todos os itens exatos da lista? E se não trouxessem, qual seria a consequência?

A mãe, por sua vez, não ousou. Apenas não exigiu o troco do gás e isso foi considerado grave erro.

O chefe de família vem almoçar e pede o troco do gás. A mulher explicou o que houve. Daí começou a discussão, os berros, a louça jogada ao chão, os constantes impropérios e acusações mútuas.

Não faz diferença se dessa vez a mãe apanhou ou não, ou se dessa vez as meninas conseguiram salvar algum prato, recolhendo a louça antes de terminada a refeição. Não faz diferença também se outro objeto foi ao ar, como daquela vez que a mãe amparou com o braço a máquina de escrever atirada em direção ao filho adolescente. Ou ainda, quando a neta testemunhou o buraco na madeira da mesa, prova de que era verdade o que tinha ouvido a avó contar: o avô tinha lançado a cadeira de ferro ao centro da cozinha.

O que fez a diferença dessa vez, foi que, depois que o marido saiu de volta ao trabalho, a mãe decidiu: “Vou largar o pai de vocês.”

“Vou largar teu pai, cansei dessa vida, vou embora.”

E repetindo essas palavras, ela foi, autômato, até o berço do caçula. Pegou o bebê que dormia e se dirigiu à porta sempre repetindo “Eu vou largar o pai de vocês.”

E saiu.

Deu-se algum tempo, mas não muito, até que a mais velha, assustada, raciocinou à irmã “E nós?”

E saiu correndo, a porta ainda aberta, atrás da mãe. A mais nova começou a correr também.

As menina avistaram a mãe já na subida da travessa principal.

Só os eucaliptos ouviam: “Mamãe, espere por nós”.

(Novembro de 2013)

(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)

Aprendizagens

Minha avó paterna sempre perguntava quando eu iria fazer o catecismo.

Na época, minha única relação com a Igreja era o som tênue dos sinos da Matriz que chegava à minha casa. Meu pai tinha sido católico praticante até casar. Minha mãe era espiritualizada, mas não tinha tido nem uma criação tradicional católica nem o desejo de desenvolvê-la.

A insistência da minha vó criou em mim uma segunda relação com a cristandade. Assim que chegávamos na casa da minha tia, com quem ela morava, assim que ela me via junto a minha mãe, questionava: “Essa menina já está fazendo o catecismo?”.

Parecia algo muito importante. Minha avó, cuja memória já se dissipava, que andava chamando as filhas pelos nomes das irmãs, que por vezes não se lembrava quem eu era ou quem meus primos eram, tinha, nessas visitas, rompantes de lucidez em que ela me reconhecia como filha do seu único filho homem, em idade apropriada para os primeiros estudos religiosos e cobrava a minha mãe: “Quando esta menina vai fazer o catecismo?”

Não me lembro como surgiu o assunto entre minha mãe e eu, acho que ela me perguntou, talvez meu pai tenha cobrado também. Mas sei que minha mãe deixou à minha escolha fazer o catecismo ou não. Eu quis. Tinha curiosidade. E dadas as constantes investidas da minha vó, parecia uma experiência  muito importante que eu estava deixando de viver.

Lembro que eu fiz questão de que a igreja fosse a Matriz, apesar da igreja do Baeta ser bem mais perto da minha casa. Queria a tradição, queria a principal da cidade. Queria a Igreja em que meus pais se casaram. Queria entender porque, apesar de ter o nome de Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, aquela não ser a paróquia original, de quando a cidade era ponto de parada para os viajantes que seguiam para São Paulo ou Santos. Pista de alguém já mais inclinada à história que à religião.

Minha mãe não se opôs. Quando ela e eu fomos fazer a matrícula, não havia mais vagas para aquele ano. Eu teria que esperar o próximo. Assim, comecei o curso com 11 anos. Era a mais velha da turma. Não sei se isso foi o que fez a diferença.

Debati muito com minhas catequistas. Pessoas boníssimas, mas que eu considerava estarem  me negando algo. Não entendi como Caim, após ter matado Abel, pôde ter povoado o mundo com seus filhos. Com que esposa, se além dele só Adão e Eva estavam no mundo? Entrava no carro e questionava a minha mãe, ela só dizia, num suspiro, para eu ter paciência e tirar as dúvidas com a catequista.

 

No ano seguinte, já no início da minha adolescência e com uma catequista mais rigorosa nos ensinamentos, o embate se agravou. Não entendia a Santíssima Trindade de jeito nenhum e gostaria que me explicasse, afinal, as professoras e minha mãe sempre me explicavam tudo e eu era aluna atenta e esperta.

Ela então começou a contar uma parábola para me explicar a Trindade. Eu me preparei muito feliz para ouvi-la. “Conta-se que Santo Agostinho estava andando na praia quando viu um menininho fazendo um buraco na areia, à beira do mar. O santo perguntou o que o menino estava fazendo e a criança respondeu que estava cavando um buraco em que coubesse toda a água do mar. Santo Agostinho riu, disse à criança que era impossível que toda a água do mar coubesse naquele buraquinho. A criança se transformou e se revelou como Jesus e ensinou a Agostinho que era mais fácil toda a água do mar entrar naquele vão do que o mistério da Santíssima Trindade entrar na cabeça dele ou de qualquer outro ser humano.”

Eu fiquei com muita raiva dessa história. História que não explica. História que serve pra dizer que você não é capaz de entender nada ( e eu que já tinha um quê renascentista). Eu não sabia que estava aprendendo na prática o que é dogma. Achava que era a professora que não queria explicar. E fiquei com raiva da catequista.

Mas chegava no domingo eu tinha dó dela. Na missa das crianças, do espaço reservado para as professoras de religião e seus alunos, via o marido da minha catequista cuspir no chão da Igreja. Via-o resmungar impropérios durante toda a celebração da Eucaristia. Via-o escarrar no solo que a esposa tanto respeitava. Eu não entendia.

Não entendia ela estar casada com ele. Não entendia porque ele estava ali, se não acreditava. Não entendia a hipocrisia. Mas fui aprendendo aos poucos.

Gostei muito de outras aprendizagens. A mais produtiva foi uma visita à igreja, com todas as suas imagens e objetos sendo explicadas. Entendi que as pinturas nas paredes representavam as etapas da paixão de Cristo. Aprendi o “outro” significado de paixão. Mostraram onde ficava a hóstia antes da consagração e o nome que ela tem, porque só é hóstia quando é corpo de Cristo. Explicaram cada parte do altar. Mostraram as roupas do padre e as diferentes ocasiões de uso destas. Mostraram os confessionários antigos. Vimos o sino!

Explicaram que não era necessário beijar o dedo, após fazer o sinal da cruz. Mas eu continuava beijando, pois tinha sido assim que minha avó tinha me ensinado. Mesmo que minha vó não soubesse disso, pois já não entendia mais do mundo bem antes de quando, finalmente, comunguei a primeira vez.

Uma vez, acho que era o mês de Maria, a catequista pediu que nós fizéssemos um texto sobre a Virgem. Eu já tinha começado a enveredar pelo caminho da poesia e decidi fazer um poema.

Naqueles versos coloquei tudo que tinha entendido que era considerado importante: a resignação de Maria à sua missão, a importância da chegada do filho de Deus, o nosso reconhecimento e a nossa submissão à grandiosidade da Virgem. E fiz umas rimas, umas metáforas interessantes. Gostei muito de fazê-lo.

A catequista adorou, leu para a classe, mostrou a uma colega. E eu, ficando sem graça…

Fiquei sem jeito pois  não sabia lidar com aquele novo aprendizado.

Além de aprender a achar trechos na Bíblia, a via sacra, os sacramentos, a salve-rainha, a rezar o terço, as músicas. E além de aprender dogma e hipocrisia, eu estava aprendendo o cinismo.

O poema fez tanto sucesso que eu fui escolhida como oradora, no dia da primeira comunhão. E deveria ler o meu poema! Mas eu continuava incomodava.

Era o primeiro evento importante em que eu falaria em público. E, pela primeira vez, (antes sempre tímida), eu me sentia preparada. Queria aquilo, mas me sentia culpada.

Li bem, fui elogiada.

Foi a primeira vez em que eu fui cínica.

Aquele texto lido com tanto orgulho no púlpito da Igreja Matriz, aquele poema à Virgem declamado no dia da minha primeira comunhão, toda minha oratória, era pura devoção, era mesmo, pura devoção…

Pura devoção à poesia.

(Novembro 2013)

(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)

Anjinho

Era uma tarde tranquila, um dia tranquilo, um dia comum.

Era o 10º andar do Condomínio Tiradentes, na avenida de mesmo nome.

Era uma mãe e uma criança em casa, em um simples final de tarde.

Uma tarde de muito calor.

Um anjinho: bebê dormindo no berço, ao lado da janela.

A mãe via televisão. Um começo de noite calmo, normal, rotineiro.

Rotina de dia de verão, todas as janelas do apartamento abertas. O calor era constante e intenso.

Ao fim da novela das seis, a mãe vai ao quarto da criança. Não está no berço. Onde estaria?

Como fora possível não ouvir o choro impaciente de quem acorda e quer atenção? Ou não ouvir as felizes exclamações de quem se aventurava em escapar do espaço que lhe é reservado? Como foi possível não ouvir os ruídos dos passinhos hesitantes que se aventuram pelo ambiente?

A mãe passa a procurar por todos os cômodos do apartamento. Primeiro, com nervosismo ainda controlado, a falta de ruído indicava mais grande apronto que grande problema.

Busca primeiro no próprio quarto infantil os locais já usados de esconderijo. O baú de brinquedos, o armário. Lembrando-se das vezes em que já encontrou o anjinho escondido pela tampa recurvada, no meio de bichinhos de pelúcia, as perninhas apoiadas em bloquinhos de montar, ou ainda, fechado atrás da porta entreaberta do outro móvel, fazendo de almofadas o estoque de fraldas.

A janela aberta, encostada no berço. Baú vazio de criança. As fraldas do armário nada escondiam. A janela aberta.

A mãe então foi ao quarto de casal, ao lado. Recordando outras travessuras. A criaturinha mal sabia andar, mal sabia pronunciar as primeiras palavras, mas já sabia ultrapassar barreiras, se espreitar por entre as roupas penduradas, alguns sapatos servindo de assento, outros, como luvas, a curiosas mãozinhas enquanto o nariz se divertia com o contato suave no pano das peças tão sufocadamente arrumadas em cabideiro tão pequeno. Ah o cabideiro! quase veio abaixo uma vez quando as mãozinhas desejaram conhecer o detalhe brilhante de um vestido.

Mas, dessa vez, as roupas estavam intocadas, o closet não havia sido violado.

A janela aberta.

Lembrou-se do banheiro. Na última ocasião em que houve grande silêncio, quando descobriu que o chiqueirinho não é um espaço inviolável para os menores, encontrou o projeto de gente divertindo-se em picotar tufos de papel higiênico e jogá-los na privada. Grande apronto. Para a mãe, claro, mães só enxergam a economia doméstica e não o infantil experimento científico.

Nada, nada mesmo. O banheiro estava impecável, como o tinha deixado após limpeza do dia.

A janela, aberta.

Começou a andar a esmo pelo apartamento, a olhar nos locais mais improváveis. Atrás do cômodo da TV nem há como entrar, mas olhou lá mesmo assim.

A janela? Aberta…

Foi até a cozinha. O armário embaixo da pia também era local de preferência da travessa criança, que se divertia com as panelas. Mas ela não teria ouvido o barulho do alumínio feito de tambor e das tampas rodopiando no piso? Sim, teria, mas foi conferir  assim mesmo.

Voltou ao quarto de bebê, procurou de novo no baú e no armário. Olhou de novo o berço, fechou a janela. A chuva repentina já havia molhado bem o travesseirinho e o lençol.

De novo foi ao seu quarto, lembrando da vez que o anjinho se esgueirou por debaixo da cama e lá adormeceu, como bebê urso que hiberna na sua caverna. Foi um dia inclusive que causou grande susto, como hoje.

Mas não havia ninguém embaixo da cama.

A janela?

Deu mais duas voltas pelo apartamento. Sufocada, voltou a abrir as janelas. Até a do quarto de bebê, a chuva de verão já havia passado.

Em nenhum momento lhe ocorreu olhar pela janela.

Toca o interfone, o porteiro avisando da ida dos bombeiros ao apartamento. Não tinha tempo para atender ninguém, o que afinal iam querer os bombeiros? Nova inspeção do gás encanado do prédio? A essa hora? Não tinha tempo nem cabeça para atender ninguém. Afinal, ainda não havia encontrado sua criança e estava começando a ficar nervosa, muito nervosa.

O bombeiro vinha comunicar sobre o corpo.

O anjinho.

(Novembro 2013)

(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)

 

 

Sina?

O pai sempre lhe cobrava um neto. Era imaginativo, sempre arranjava meio de dizer a mesma mensagem com roupagem diferente:

– Você fica aí desperdiçando vida.

O rapaz levanta pouco os olhos do livro, com nenhuma vontade de iniciar conversa:

– Do jeito que o senhor fala, até parece que eu não faço nada dos meus dias.

O mais velho não perde o fio:

– Você tinha é que cuidar de criar uma família. Arranjar moça com dom de boa mãe. Quero uma casa cheia de netos…

O filho nada respondeu, entretido em ideias escritas. Mas o pai continua:

– Vinte e três anos… na sua idade eu já era pai seu, de Tônia e de Juninho.

O rapaz deixa o livro descansar da conversa. Sem brigas de atenção.

– Juninho não tinha nascido

– Mas já estava em barriga…

– Vá cobrar de Tônia.

– Não preciso, Tônia já está casada, o andamento natural é logo, logo vir frutos.

– Não desperdiçar vida é fazer dela o que se tem gosto, não vou me forçar a casar com urgência só porque o senhor manda.

E volta a ler, dando a conversa por terminada. O pai se impacienta com tão pouca atenção:

– Da nossa família, o tempo é inimigo e disso você bem sabe. Como pode se pôr aí tão tranquilo?

O mais velho se referia ao acontecimento de constantes mortes prematuras nos homens  daquela linhagem, por conta de coração que resolvia se aposentar cedo. O pai do pai havia morrido com 42 anos, o avó do pai, com 44, o bisavó do pai, com 40.

O rapaz nada responde, os olhos pousados em parágrafos. Seu pai se coloca em frente dele, em alto volume e gesticulando:

– Você fica aí só cheio de livros.

Quem se impacienta é o jovem:

– Estudando, né, pai?

– Foi o que eu disse.

Lembrou ao pai que o estudo encurta os degraus do caminho da melhoria de vida. Mas o homem vivido não se deixou vencer:

– Não ocupe muitas horas em melhoras de resultado que você pouco vai desfrutar…

O mais velho sabia da demora que há para o estudo se converter em “melhorias” e arremata:

– … filho traz melhoras rápidas, melhoras de alegria.

Faz-se grande silêncio. Muda então o tom imperativo para um mais conselheiro:

–  …filho, não espere que seu caprichoso coração dê mostras de greve, como o meu, para se preocupar com o andamento da vida.

O pai já havia se desmanchado um pouco, em paradas.

Mas acontece que ao coração do rapaz se somavam outros caprichos, nenhuma moça lhe despertava o amor. Já havia, é claro, investido em namoros, mas nenhum de retorno a longo prazo. Preocupava-se com a vida, e muito. Muito aprendia, pois queria estudar no estrangeiro, ver outras paisagens, outras vidas.

Sobre tais planos, o pai era taxativo:

– Muito planejamento é desperdícios.

– Tão curta vida e o senhor gasta a sua discutindo comigo…

– Ora, estou de acordo com minhas ideias, gasto tempo com filhos, mesmo que em desentendimentos.

-…..

– Coração que faz greve, sem direito a negociação. Fato é que ninguém da nossa família até hoje ganhou das teimosias caprichosas do coração.

O moleque desafiou: não seria melhor não colocar criança no mundo, fadada a tão curto destino?

– Arre…não dá pra conversar contigo.

Não que não se imaginasse casado e com filhos. Porém, não estava interessado em que prematuros planos de descendência viessem bagunçar a organização da sua existência.

Chegou a se formar engenheiro, a morar no estrangeiro.

E o pai, sempre decepcionado: desperdícios.

Ao voltar, se fez em bom emprego do qual gostava.

Conviveu em outros namoros, mas ninguém ainda habitara seu coração.

Brincava com os sobrinhos, emprestava dinheiro aos irmãos, visitava a mãe, ralhava com o pai. Até que o coração deste se aposentou de vez, após 47 anos de pulsações constantes.

O moço, na juventude, achava corriqueiro o amor não ter sido ainda achado. Mas aos 30 anos, doía-lhe o peito e a existência essa ideia de falta, embora, claro, nunca o tenha admitido ao pai.

Aos 35 ele se sente mal jogando futebol com os amigos. Palpitações, desmaia.

Assina assim a sua sina?

Socorrido, descobre o nome e sobrenome da doença. Enfermidade conhecida há mais de um século, ao alcance de qualquer manual médico. Aprende que remédios tomar, como se alimentar, quais exercícios, ou não, fazer.

E continuou vivendo.

Vida normal. Intercalada de visitas mensais ao cardiologista.

Em uma dessas, encontrou moça também de coração aos cuidados.

A união se deu quando ele tinha 42 anos, sua filha nasceu três anos depois.

Fez questão de levar a bebê para ser conhecida pelo avô.

Para a lápide, sentenciou:

–  A minha menina está aqui…o senhor é que não se cuidou.

(Março de 2015)

Menino, eu vi

Era uma sala, entre tantas salas. Era uma conversa, entre tantas. Era a mesma sala de sempre e uma das nossas tantas conversas. Há anos, o mesmo tom de conversas.

Era simplesmente mais um dia de risos e ideias, mais um dia de projetos e piadas, mais um de relatos, chacotas e desabafos. Era eu de sempre e você de sempre. Você, o menino de sempre.

Eram cinco da tarde. Era a sala de sempre.

Eu não me lembro em que momento, eu não me lembro qual foi a exata frase que escapou da sua boca de mão dada com a sua alma, e eu vi. Eu só me lembro que vi, abriu-se uma fenda no chão, o relógio marcava infinito, você continuava sorrindo ideias, o seu espírito começou a dançar pela sala: a meninice revelava o homem.

Eu vi o momento em que o instante se expande, eu vi o homem. Eu vi o homem em você que eu não sabia que existia, que talvez nem você saiba que já existe.

Eu vi o homem e eu não podia ver o homem. Porque te classificar como menino marcava a distância segura entre a amizade e o desejo. Eu não posso te desejar porque você já é o homem de alguém.

Não, minto. Não foi de um dizer que saltou seu espírito, ele veio galgando frase a frase os degraus de saída e eu não quis perceber. Eu tentei não perceber, eu não queria acreditar, tanto que negava sua fala, o interrompia dizendo “Mas você não pensa realmente isso…”, “Você não acredita nisso” eu tentava achar em ti uma incongruência, uma paradoxo ou até uma hipocrisia, não para te denegrir (todos somos paradoxos e exercemos hipocrisias), mas para me salvar… me salvar de te amar.

Você não me salvou. Com minhas interrupções provocativas, quase ultimatos, eu esperava um gesto brusco, uma resposta ríspida… mas você parou, respirou, e disse que eu tinha razão, mas que você estava se colocando em um processo de realmente agir de acordo com o que me dizia e se descortinou “Eu estou tentando”.

Me desarmou. Eu vi seu processo sincero, eu vi seu crescimento através de um entender claro e honesto sobre si mesmo, como gota que evapora e se quer filtrada como chuva,  e foi aí que eu vi seu espírito preenchendo a sala, a fenda e o infinito. Era impossível continuar a negar.

Eu vi, e eu sei o que senti. Percebi em mim a atração virando sentimento. Percebi, mas não consegui parar este processo. Fui agraciada com a consciência do que via e do que sentia, no momento em que tudo acontecia, mas não era possível agir sobre isso. Eu era consciência passiva dos acontecimentos.

Assim, parada, extasiada, apenas continuei te ouvindo, prestando atenção em ambos os acontecimentos: o concreto e o etéreo. Te olhava de frente e espiava a fenda, o espírito e o infinito.

Disfarçando o meu desconcerto fiz gracejo tentando tirar de mim e do ambiente a importância daquele momento. Em vão. Apenas sei que consegui que você não percebesse nada.

O palpável se tornou de novo a realidade e continuamos a conversar, o relógio marcava cinco e meia. Hora de ir.

Fomos. Cada um com seu rumo e seus afazeres. Mas levei comigo o infinito. E eu não sei o que fazer com esse infinito. O infinito não cabe em mim.

Tenho-o disfarçado de ti e de todos, mas não é possível negá-lo. E toda vez que você me chama ou vem conversar comigo é uma alegria e uma dor, porque aquilo que a gente vê na fenda do espaço e na brecha do tempo não se torna novamente invisível… e deveria, já que não é viável.

Comecei a pensar que mesmo que não houvesse impedimentos externos, algum tipo de relação amorosa entre nós não seria saudável. Afinal é isso que a gente faz com o amor indesejado, a gente o aborta com racionalizações.

Dos problemas, o primeiro é que o seu lado ainda imaturo poderia, sem querer, me magoar. Afinal, bem poucos frutos seus estão no ponto e a sua inflorescência  não iria me compreender (o que é ser jovem senão ser alguém de uma existência com poucos ou nenhum fruto maduro?)

Poderia também acontecer de eu querer extrair de ti o que ainda está verde, ou você esperar de mim o que já apodreceu. Eu, uma safra de extremos: poucos frutos não maduros e vários brotos que talvez nunca floresçam.

A verdade é que eu não me perdoo. Não me perdoo por estar quase a amar alguém de outrem. Não me perdoo por cogitar amar um quase-menino. Eu, que espero homens.

(Abril de 2013)

De letra

Dezessete anos, ambos. Colegas de sala. Ela, escrevia muito bem. Queria ser escritora. Ele, jogava bola muito bem. Futebol, claro. Aspirava a jogador profissional. Olhares, conversas, olhares, confidências, olhares… Fuxicos entre amigas, tapinhas nos ombros entre amigos. Um encontro da classe inteira para um cinema, Só os dois foram. Tudo combinado.  Todo mundo sabia que um gostava do outro, menos eles mesmos. Namoro.

Concurso literário na escola. Ela se inscreve. Tem de elencar só três das poesias entre as milhares que tem. Ele tenta ajudar. Inútil. Acha tudo que ela escreve excelente. Ela ganha a primeira e a segunda colocação. Ele estava na premiação. Tenta carregá-la nos ombros pela escola, ela não deixa, fica sem graça.

Campeonato interno. Toda sala com seu time. Ele é o artilheiro, da escola. Ele é o time. A 3aC vence, estará nos jogos escolares representando a todos.

Campanha difícil, mas a E.E.P.S.G “Jardim Sonho e Fé” começa bem, vai chegando aos poucos. Toda partida é bem suada, literalmente. Mas a escola tem seu craque. E é graças a ele, que, nos 47 do segundo tempo (acréscimos do juiz) conseguindo sair de uma marcação mais que cerrada, cruel até (as canelas que o digam) , consegue um gol. O gol da classificação para as quartas de final. O gol que eliminaria o time favorito, de alunos de escolinhas de futebol, com uniforme próprio. É a escola pública versus a particular, é a garra versus a comodidade, é o esforço versus o patrocínio.

Foi um gol dedicado a ela. Ela não estava no jogo. Nem nesse, nem nos anteriores. Em nenhum deles.

Foi um gol dedicado a ela e ela não gostou, não entendeu. Ele chegou carregado nos ombros pelos colegas desde o quilômetro e meio que separavam o campo da sede do time. Todos falavam ao mesmo tempo. A porta da escola em hora de saída, congestionada. Ele disse que o gol foi pra ela. Colegas contavam em detalhes como tinha sido o gol. Cada um aumentando algo. Cada um contando os dez, os vinte, os noventa minutos anteriores. Ele repetiu que o gol foi pra ela. Perguntou o que ela achava. Ela, pega de surpresa, sem tempo de lapidar, disse que aquilo não era algo que se dedicava a uma namorada. Silêncio. Esperavam uma retratação. Ela confirmou “É óbvio que isso não é o tipo de coisa que se dedica a uma namorada. Um poema é algo que se dedica a uma namorada”. Havia quem concordasse, não estava no jogo, é claro.

O casal, a sós, discute. Há muito que ela espera um poema dele, ou pelo menos um cartão no dia dos namorados, ou no aniversário dela. Há muito que ele espera que ela vá ver, nem que seja um só, jogo dele. Não é possível que ela esteja tão ocupada, não é possível que sendo tão inteligente ela precise estudar tanto. Ela entrega: não gosta de futebol. Futebol é das massas é alienante, é usado para desviar a atenção dos problemas político-econômicos-sociais do país. Mas ela o apoia, é claro. Ele rebate que não é estúpido, sabe do uso que se faz do futebol mas não é por isso que vão tirá-lo dele. Se o futebol não fosse tão contagiante, tão empolgante, tão..ele não seria usado por ninguém, pra nada. É a sua força que gera o oportunismo do uso e não o uso que gera a sua força. E que raio de apoio é esse que ela nunca está ao lado dele, nunca comemora com ele e se ofende com a dedicatória? Ele nem sabe pra que serve literatura e estava com ela no maldito concurso. Como você consegue estar lá ao meu lado sem entender o que eu faço? Como é que você consegue dizer que me apoia sem concordar com o que eu faço?.

Dias depois, mesmos separados, ela vai ao jogo. Chega tímida, quase resignada. Depois já está falando, gritando, xingando. É realmente contagiante. Fica indignada e até preocupada quando ele leva uma falta. Justifica todas as que ele comete. Fim de jogo. Estão na final. O time silencia ao vê-la. Deixam o casal a sós. A arquibancada é testemunha do cumprimento sem graça entre ambos. Silêncio. É ele quem diz “sabe, eu nunca vou conseguir dedicar a você um poema porque…porque eu não sei escrever assim que nem você”. Ela, condescendente, diz a ele que não precisa escrever como ela. Ele sorri  “Precisa sim. ”

Ele a leva pela mão até o campo, perto das traves  “Sabe… meu papel é isto daqui onde a gente tá pisando e a bola é a minha caneta, e ali ó “ aponta as traves “ ali é onde o negócio tem que ficar bonito sabe é como esses negócio aí de metáfora, rima… tipo…gol assim rasteirinho de passe que a gente recebe fácil do companheiro, sem marcação e de goleiro que não tem vontade de ir na bola… gol assim é que nem rima pobre, que você estava me explicando… e eu nunca… eu nunca te dedicaria algo pobre.”

Não é preciso dizer que o casal voltou a ser casal. Nem que ela estava lá, no dia da final. Não foi o primeiro, nem o terceiro, o gol, que ele dedicou a ela. Foi só o da dividida, dividido. O da vitória. Pois só este. Só este. Era pura poesia.

(Março de 2006)