(Cena escrita em maio de 2016 no Núcleo de Estudos Cênicos do CLAC – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, que hoje não existe mais, pois a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores. Esta cena foi resultado de um exercício pós pesquisa, feita com todo o grupo no Centro de Pesquisa e Memória de São Bernardo do Campo e tem como objetivo o que o título diz.
A pesquisa e escrita eram parte do projeto de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade, proposta da dramaturga e professora Solange Dias. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Como não há mais CLAC, este e outros projetos se perderam.)
O prédio, de portão aberto mas de porta fechada, tem a indicação E.E. Dr. Baeta Neves. Um menino e um senhor idoso passam o portão. O menino, como todos os meninos, é ligeiro e está à frente, o senhor caminha com alguma dificuldade, mas sem bengala. Esperam que o portão interno abra, se apresentam na secretaria, esperam. Esperam. Esperam. Esperam.
Até que são encaminhados para uma sala, nela 11 pessoas estão sentadas ao redor de uma grande mesa.
Diretora – Boa tarde.
Senhor – Boa tarde.
Menino (amuado) – ….
Diretora – Então, estamos aqui para resolver a situação do João Vitor, o senhor é o o… representante da família? o nome do senhor?
Senhor – José Aparecido.
Diretora – E o senhor é avô do João Vitor?
Senhor José Aparecido – Bisavô.
Diretora – Certo…então, seu José Aparecido, primeiro os professores vão falar, explicar a visão deles e depois é a vez do senhor e do João.
Começa-se em sentido horário, a professora que estava ao lado da diretora na mesa é a primeira a falar.
Professora de matemática – O João Vitor não respeita professores, colegas, não faz a lição. Levanta a toda hora e sai da sala quando bem entende, é desbocado, é palavrão a toda hora…não tem condição…
Professor de geografia – É isso, não tem jeito com o João em sala, não copia nada da lousa, nem isso ele faz, o caderno dele de geografia deve estar todo em branco…
Professora de ciências (interrompendo) – De qualquer matéria…
Coro – De qualquer matéria…
Professora de inglês – Eu nem sei se ele tem caderno, nunca vi.
Professora de português (que estava se segurando) – Olha a gente tem que deixar claro que não é uma questão de “Ah o João Vitor é agitado”, “Ah, não faz a lição” porque isso metade dos nossos alunos não fazem, o problema é que o João cria brigas. Esta semana, na minha aula, um aluno se levantou para me mostrar caderno e tropeçou no João que, como sempre, estava de pé, passeando pelas carteiras. E ele não me deu um soco no outro? Aí você pergunta “João por que você fez isso?” “Ô, fessora, ele pisou no meu pé de propósito.”
Professora de história (completando afoita e lá se foi o sentido horário) – É, ele provoca os colegas, o colega tá lá quieto e o João vem pegando estojo do outro, puxando cabelo, passando branquinho na cara…
Professora de educação física – Nem na quadra esse menino tem sossego, chuta a bola pra longe, pro telhado de propósito..
Professor de geografia – Fica no celular a aula inteira….
Professora de história – Olha, eu até prefiro que ele fique no celular porque aí ele fica quieto, se ele não tá no celular ele tá levantando toda hora, enchendo os outros…
Diretora – Então João Vitor, o que você tem a dizer sobre tudo isso que você está ouvindo?
Menino João Vitor (cabisbaixo) – …
Diretora (em tom conciliador) – Então João, essa é a hora para você se explicar.
Menino João Vitor (sem levantar a cabeça) – …
Senhor José Aparecido (calmo) – Vamo, minino, peça desculpa…
Menino João Vitor (ainda sem levantar a cabeça) – …
Senhor José Aparecido – Ele vai milhorar, viu?!
Diretora – Todas as chances já foram dadas…
Senhor José Aparecido – Mas ele vai milhorar, ele também é assim arisco na casa dele, mas ele tá melhorando aos bocadinhos…
Diretora – O senhor entende o que estamos fazendo aqui?
Senhor José Aparecido – Sim, e acho muito bom, muito bom que é pra ele ouvir e passá essa vergonha que ele tá passando com tudo que é professor junto falano o que ele apronta que não é pra ele vim dizê que é mintira.
Diretora – Então o senhor concorda com que estamos fazendo?
Senhor José Aparecido – Sim, e acho muito bom, porque só assim pro mininu melhorá.
Diretora – Então vamos começar a votação para ver quem é a favor de que o João Vitor seja convidado a se matricular em outra escola.
Senhor José Aparecido (desconfiado)– Num entendi.
Diretora – Então, nós estamos aqui para decidir se o João vai ou não continuar estudando aqui.
Senhor José Aparecido (um pouco agitado) – E o mininu fica sem iscola?
Coordenadora – Nós vamos ajudar a conseguir matrícula em outra instituição.
Senhor José Aparecido (agitado)– Mas aqui o mininu tá do lado de casa, como vai sê isso? E pra quê isso? Num tô gostano dissu não.
Diretora – Mas, senhor José, o senhor disse que concordava com o que estamos fazendo aqui.
Senhor José Aparecido – Acho bom vocês tudo falano pro pro mininu melhorá… saí da iscola num vai milhorá…
Diretora (afirmativa) – Mas ele vai pra outra escola.
Senhor José Aparecido (negaceando com a cabeça) – Mai num vai milhorá…
Professora de matemática – Olha, seu José, às vezes uma escola longe é até bom, pra assim dar valor. Eu imagino que o senhor não teve escola perto de casa.
Senhor José Aparecido (sério) – Não, sempre morei aqui mas discia isso tudo i andava , andava para estudar no Iracema…
Professora de história – No Iracema Munhoz, no centro?
Senhor José Aparecido (assentindo com a cabeça) – E eu mi matriculei sozinho, tinha 12 anos…
Professor de geografia (interrompendo) – Isso porque o senhor valorizava o estudo, se o João tivesse que andar tudo isso ia valorizar o estudo…
Coordenadora – Gente, estudar perto de casa é direito garantido por lei..
Professora de ciências – Mas não é isso que ele quer dizer…tem o Fornari logo ali, vai estar perto também..
Coordenadora – (fala em cima da professora) Tem que ver se o Fornari tem vaga…
Professora de ciências (fala em cima da coordenadora) – O que a gente quer dizer é que estas crianças ganham tudo de mão beijada, é livro, caderno, lápis do governo, se não fosse tudo tão fácil eles iam valorizar o estudo.
Professora de matemática – O senhor que é sério, trabalhador, com certeza valorizou o que teve porque era difícil…
Senhor José Aparecido (professoral) – Olhi sou pai de família, trabalhador… aposentado, mais trabalhei muito…mas aprontei muito tamém…
Professor de geografia (mais conciliador) – Todo moleque apronta um pouco…
Senhor José Aparecido – Mas eu aprontei muito, muito e de moço, muita briga e briga de faca…tamém num podia relá em mim não..num entrava mais em ônibus porque o motorista mi conhecia i nu mi queria… briga por causa de muiê, em baile, aqui..aqui na esquina desta rua memo, aqui na frente, tinha um bar bom pra dançar e namorar e bom pra puxa briga (sorri) uma vez entrô polícia por causa das briga e nós fugimo pelo fundo, e tivemu tempo de entrar no fusca da polícia, tirá os banco e corre cum eles até ali a fonte de àgua, a gente ia levá pra casa os banco mais nun guentemo corre cum eles (ri).
Mas o pessoal do baile sabia quem nóis era e os policial perguntaram tudo, tudinho aí um dia pegaram nóis, botaram num caminhão aberto com polícia e cum o padre. É, cum o padre… o padre Lázaro que pra vocês é nome de praça mas que eu cunheci…e aí o caminhão ficou dando volta com nóis tudo e o padre ficava falano “Esses indivíduo é seus vizinhos, mas não merecem confiança, cuidado com eles” “cuidado com eles” “cuidado com eles” eu mi lembro até hoje como ele falou, eu não achava que as pessoa tinham que não confiar em mim, eu não pensava nisso, eu num pensava que meus vizinhos podia ter medo de mim, eu achava que eu mi defendia, que eu tava no direito de me defendê..
Aí num prendero a gente, acho que só pudiam prendê, comu fala, em fragrante…bom, soltaram nóis em casa, mas aí as pessoa num falava mais cum nóis, na venda, eu num conseguia comprá nada, ni eu nem meus companheiro, num conseguia arranjá trabalho. Nóis só tinha amigo no bar. Mas eu me afastei do bar, porque percebi que ali só me dava problema, arranjei trabalho em fábrica, longe, do bairro, passô meses, eu num pisava mais no bar, num arranjava mais briga, mais as pessoas continuava fazeno qui nu mi via. Aí eu fui até a casa do padre pedí pra ele falá pras pessoa que eu tava melhor, que agora eu era home bom, trabalhador. E ele falou, e os vizinho e o dono da venda voltarum a falá comigo.
Pega o mininu, coloca pros colega pra falá o que ele faiz de errado, os amigu vão ignorar ele daí ele percebe. Percebe e muda. Mas tirá da escola num faiz milhorá não.
Coordenadora (em cima da fala do senhor e meio baixo) – Não é viável isso…
Diretora (cortante) – Muito importante a colocação do senhor. Podemos dar início à votação.
Professora de matemática – Sou a favor de que o João vá para outra escola, acredito que tem que perder para dar valor..
Professor de geografia – Eu acho que o João não se encaixa nas regras dessa escola, talvez em uma escola com menos regra…
Professora de ciências – Já demos todas as chances, outra escola é melhor.
Professora de inglês – É já esgotamos nossas forças…
Diretora – Seu voto, professora.
Professor de inglês (sobressaltada pela chamada que tomou) – Pela expulsão.
Coordenadora (contemporizando) – Lembrando que expulsão não existe, é um convite para o aluno buscar uma escola que se adapte mais.
Professora de português – Acho que com o susto ele se endireita, aqui já esgotamos os recursos. Sou a favor.
Professora de história – Eu tenho dúvidas, voto por mais uma chance.
Mãe aleatória (que estava ali só para dar um caráter de conselho de escola representativo dos pais também) – Olha, eu só conheci o aluno hoje, o que sei foi de ouvir falar, e são coisas sérias, o meu filho não é da classe do João Vitor mas sempre conta das brigas, eu acho complicado ter um aluno que é violento, e ele agora nem pede desculpas…eu sou a favor.
Professora de educação física – A favor.
Professor de artes – Eu voto contra.
Diretora – Então foi decidido por maioria, o João Vitor nem precisava vir amanhã. Nós vamos pesquisar vaga nas escolas próximas e a coordenadora vai entrar em contato com o senhor para avisar em qual fazer a matrícula do João.
Nocauteados e anestesiados pelo soco, o senhor e o menino saem do ringue. Agora o bisavô segura o bisneto pela mão, que chora. Não sabe o que falar. Já na rua, olha para a padaria que está no lugar do bar de tantas confusões passadas, onde tantas vezes, quando jovem, e com muito mais idade que o bisneto, também arranjou brigas. E sente saudades do tempo em que havia mais segundas chances, mesmo que os delitos fossem mais graves.
( Observações:
1 – Esta é uma obra de ficção. Eu fui professora e participei de vários conselhos de escola com o mesmo objetivo, mas nunca lecionei na E.E. Dr. Baeta Neves. Esta escola foi escolhida porque realmente está, hoje, na mesma rua em que ficava o bar “risca faca”, que era a fama do bar e não nome. Aliás “risca faca” era a fama do bairro do Baeta Neves durante as décadas de 1940 e 1950. O relato do senhor José Aparecido, inclusive o do roubo dos estofados do carro de polícia e o da iniciativa do padre é, por incrível que pareça, fato histórico.
2 – Meu lado linguista me puxa as orelhas por representar a fala do senhor José Aparecido com “fazeno”, “falá”, “mininu”, prendê, “cum” etc. Pois sei que falantes altamente escolarizados e que são de regiões centrais do país também “comem o ‘r’ e o ‘s’ finais de palavras, e paulistanos também falam “mininu”. Então porque fiz assim? Me parece que a escrita assim, em dramaturgia, vira um código para o ator. Como o resultado final é a atuação, o texto é um recurso e não precisa ser sempre levado ao pé da letra, é um indício de quem é a personagem. Na momentos do ensaio, atores, atrizes e diretor(a) trazem sua visões e interpretações e fazem um todo que supera o texto.
Na prática, é responsabilidade do ator e da atriz trabalhar as nuances de fala popularmente conhecidas como sotaque. Em uma palestra na Cia do Nó, Santo André, com o grande Luis Alberto de Abreu, em 2016, peguei carona na pergunta de uma colega preocupada em como representar a fala do morador de certa cidade do interior de São Paulo na sua dramaturgia. Abreu foi categórico “Você não precisa se preocupar com isso.” Abreu confirmou uma impressão que eu já tinha: o dramaturgo se preocupa com vocabulário regional, representações fonológicas e fonéticas não são com a gente.
Eu fico muito triste quando pergunto e ainda insisto na pergunta e me respondem “Você não precisa se preocupar com isso”, porque se eu estou perguntando é porque eu acho muito importante eu me preocupar, e quero muito me preocupar, muito da minha identidade está nesta preocupação. E pior, a pessoa que responde acha mesmo que está sendo acolhedora, o Abreu foi super fofo, mas eu fiquei com dois problemas: eu não sei como representar a fala do interiorano de uma forma não estereotipada e eu não sei onde/de quem obter esta resposta.
Na verdade o “onde” eu tenho. Quase me tornei sociolinguista, anos de participação em grupo de estudo na faculdade serviram, pelo menos, para me informar da ampla gama de 20 anos de estudos na área. Eu me lembro, por exemplo, de um estudo do pessoal de João Pessoa que registrava as diferenças do alçamento da vogal pré-tônica em várias capitais do nordeste. O que é este palavrão “alçamento da vogal pré-tônica” ? O “é” de “mé-ni-no”, por exemplo. Os nordestinos que abrem bem a boca para falar as vogais “é”, e “ó” não o fazem da mesma forma e em todas as palavras. Há palavras que os baianos falam “e” e não ““é”, quando paraibanos fazem o contrário. Mas na representação padrão “Globo” de sotaque, que acaba sendo sempre reproduzida, é só colocar uma personagem falando “mé-ni-no” que pronto, esta personagem pode ser de qualquer lugar do nordeste brasileiro, como se baianos, alagoanos, pernambucanos, cearenses, paraibanos etc não tivessem diferença de fala entre si. E pior, como se não houvesse diferenças de fala entre o baiano, alagoano, pernambucano, cearense etc da capital e do interior do estado, da classe alta e da classe baixa, jovem ou idoso etc
Mas, você, que por algum grande esforço de paciência chegou até aqui na leitura, pensa “A arte não tem uma obrigação de representar o real, é imitação do real”. Sim, é fato. E a representação da fala de nordestinos, caipiras etc já está de tal forma estabilizada que vira baliza para o ator e atriz comporem suas personagens, o público também já está acostumado. O público também sabe que é de brincadeira, “as coisas não são assim na verdade”.
O problema é que estas “balizas representativas” de tão reiteradas a longo de anos se tornam ideologia. Se estamos no momento de questionar como a mulher, o negro, o homossexual, o transsexual são representados na literatura, teatro e cinema, será que este também não é o momento de rever como moradores e moradoras de regiões que não são grandes metrópoles ou que não estão no eixo Rio-SP são representados? Imagine uma personagem que fale coisas como “ocê”, “cademaria” (para se referir a “casa de Maria”), “porrrta” com o erre bem puxado. Agora pense, você consegue imaginar esta personagem como uma pessoa muito séria, numa profissão rígida, um juiz por exemplo? Você consegue imaginar uma personagem que fale desta forma sendo representada num filme que retrate um grande drama psicológico?Preconceito linguístico está aí, existe.
Como a pesquisa linguística entraria nisso? Penso. Na verdade, por enquanto, só sonho, em pegar as pesquisas sociolinguísticas, pinçar de lá as palavras-exemplo de um certo uso fonológico, trazer para o texto teatral e ir preenchendo com vocabulário e, claro, com as intenções de fala e ações das personagens. É criar uma dramaturgia fazendo o caminho contrário da pesquisa sociolinguística. Os linguistas gravam falas de pessoas, transcrevem, compõem seu dados e publicam a pesquisa. Eu usaria dados da pesquisa para compor falas e depois buscar com ator/atriz como enunciar estas falas.
Mas, para isso, eu preciso de um grupo teatral que topasse o desafio e para topar o desafio o mesmo grupo teria que se apropriar da necessidade disso tudo. Antes até de estar em um grupo teatral, eu teria que ter personagens que trazem diferenças regionais, o que eu não tenho. Esta cena foi a única em que eu trouxe esta questão, e o projeto que a provocou está parado pelo motivo acima descrito. Por esta e por outras razões, a fala do senhor José Aparecido foi escrita do jeito que está acima, da mesma forma que outros autores e autoras fazem, sempre fizeram e continuam fazendo. )