Para a nova situação

Prova de amor maior desconheço. Até tínhamos terreno baldio perto da casa, logo na esquina, mas usá-lo para os treinamentos atrairia a atenção dos vizinhos. Então meu pai, ele mesmo, picaretou o quintal desfazendo camadas e camadas de cimento duro, há anos assentado, para fazer brotar terra.

E foram vários dias desse esforço, meu pai chegava do trabalho e debaixo de luz amarela fraca desfazia o concreto em pedaços até o horário que a tolerância ao barulho permitia. E já era um ritual dizer aos vizinhos que o piso precisou ser quebrado por necessidade de dreno. E já era um ritual dizer aos vizinhos que meu irmão estava morando com uma tia.

E era preciso porque a umidade subia da terra e crescia pelas paredes fazendo nascer pelas cascas da tinta expulsa grossos musgos e até cogumelo. E foi preciso porque meu irmão passou em prova concorrida de curso técnico da capital e não tinha condições dele ficar indo e voltando.

Como o problema era comum a todos da vizinhança, ninguém duvidou. Chegaram até a convidar meu pai para resolver o mesmo problema em suas casas. Como meu irmão sempre foi rapaz trabalhador e estudioso, ninguém duvidou. Só queriam saber quando ele vinha, para cumprimentar. E meu pai em falsas promessas e falsos fatos falava que quando terminasse de solucionar nosso terreno faria gosto em solucionar o vizinho, Mas ele esteve aí ainda este sábado, a senhora não viu não?

E eu queria ajudar, mas pai dizia que era lida muito pesada para menino. Meu irmão podia ajudar, já que aguentava dez vezes o seu peso, mas mesmo de madrugada meu pai temia que ele fosse visto despejando o entulho na caçamba alugada que esperava na calçada da casa. Então era o pai sozinho que recortava, recolhia e descartava os pedaços do nosso quintal.

Minha mãe não teve o mesmo pudor quando pediu ao mano que ele carregasse o beliche para a rua, o que ele fez com gosto de ajudar, mas não sem certa melancolia por não poder mais dormir ali. Pai ralhou. Foi às duas da manhã, ninguém viu! Mas pai estava também chateado com a desfaçatez, Ir se livrando das coisas do menino assim! Minha mãe era muito prática, argumentava que já devíamos ir arrumando tudo “para a nova situação”, que era o que ele já estava fazendo no quintal, além de aproveitar o fato do quarto agora ter maior espaço para uma cama só pra mim.

Eu queria um quarto só para mim, mas tinha dó do meu irmão. Ele já não falava, completamente transmutado, mas eu o entendia através dos seus olhos e antenas. Mal chegado da escola, já subia em seu dorso, versão nova da brincadeira de cavalinho. Ele não se cansava, passeávamos por dentro da casa toda, às vezes derrubando coisas. Seria um cachorro, se não fossem o tórax estreito, o abdômen bojudo e as seis patas.

E era como um cachorrinho que, quando o buraco do quintal ficou de tamanho suficiente, que ele manejava a cabeça distribuindo ao redor a terra que meu pai jogava com a pá sobre ele, aprendizado na nova espécie. A gente nem sabia se era assim, mas meu pai já estava em desespero, como uma formiga sozinha constrói seu formigueiro?

(Setembro de 2016)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *