Na posta-restante – 1a

fósforos apagados

 

Quarta 18 de setembro de 2019

Olá, como você está?

Pra começar, eu tenho consciência de como é ingênuo e bobo esta ação de lhe escrever. Sim, foi um impulso. Mas a partir do momento em que eu digito um texto para mais rapidamente organizá-lo, reescrevo à caneta em papel vergé de cor cuidada ao escolhida, e envelope selado recebe o resultado bem acabado, o impulso transformou-se em planejamento e processo.

Se os comentários de redes sociais podem ser desculpados devido ansiedade em ato reflexo facilitada pela grande rede que imprime pixels, em tempo real, em telas compartilhadas por todos, o meu meio de comunicação escolhido não me dá a menor chance: eu tenho plena consciência de como é ingênuo, bobo e ridículo, escrever, envelopar, selar, ir ao correio ou seja, enviar uma comunicação a alguém que não conheço, alguém do time dos famosos.

Mas é exatamente o que eu estou fazendo, então, você aí do time das pessoas realizadas artisticamente receba este “alô” aqui vindo da geral dos irrealizados: essa enorme arquibancada das tentativas frustradas. Como é aí do outro lado?

Exatos dois anos depois da 1ª tentativa de contato (aliás, sabe aquele trecho em que eu disse que não era necessário te encontrar pessoalmente? Eu menti!), eu nem sei direito porque estou escrevendo agora, qual seria o disparador.

Acho que é porque não há disparador, há uma constante.

Eu ainda sou…melhor, ainda estou.

Eu ainda estou no chão olhando os mortos nas prateleiras e chorando. Eu te escrevo porque cansei do diálogo como os mortos e preciso interagir com os vivos. Cheguei nesse chão quando fugi do burocrático certa noite. Precisava sair dali, urgentemente e cheguei até as várias frias e altas prateleiras.

O “dali” era um aula de literatura portuguesa em certo curso de graduação. Não era uma aula entediante, muito pelo contrário, que o tédio tem a vantagem de nunca enganar ninguém. Já o estímulo pode frustrar, como faísca que quase, apenas quase deu o fogo que nos traria o calor. Aquela aula foi uma sequência de fósforos inutilizados.

E a faísca foi um trecho de autor que não me lembro usado como epígrafe em uma aula de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Não conhecia Sophia.

Me identifiquei dos ossos à aura com Arte poética II apresentado a mim, displicentemente, junto a xerox de outros poemas.

Expectadora na expectativa, por mais de 40 minutos esperei pelo debate da epígrafe e seu contexto, o que não se deu, e pela leitura da Arte Poética, que não aconteceu.

Nem aconteceria, eu perguntei. Não estava programado.

Eu PRECISAVA conversar sobre a arte de Sophia na voz de Sophia, ansiavam os meus poros por poética. Eu precisava saber se professor e colegas sentiam o que eu sentia. Eu necessitava sentir junto.

O que se deu foi uma aula puramente técnica sobre todos os outros poemas de Breyner Andresen da coletânea. E de uma forma a capturar a geleia viva e petrificá-la pelas paredes como textura a ser apenas admirada (Ah, Clarice, a primeira entre os mortos a quem perguntaria tanto!).

Mas parte da geleia viva deve ter endurecido dentro de mim pois eu sufocava. Saí da cadeira, da sala, do corredor, do prédio. Vi outro prédio, fui até ele, a biblioteca. Então procurei o livro do qual havia saído o trecho da epígrafe, e é muito estranho como o encontrei tão rapidamente. Fiquei saciada com o que o texto integral trazia.

É muito estranho que um texto de escritor que para mim avançou pouco na minha escala pois foi de “desconhecido” a “não me lembro” (Sophia não, Sophia carreguei comigo) é muito estranho que esse escrito desse senhor tenha me trazido mais conexão humana que a convivência em aula com colegas e aquele professor. Sim, eu me senti saciada, mas não feliz. Sozinha no chão entre as tão imponentes prateleiras, me dei conta que o diálogo que me preenchia era sempre com os mortos.  Chorei. Eu em cinzas no cimento queimado.

Mas a pontada aguda da minha solidão não incomodou o mundo, saí da muito e tão bem frequentada Florestan Fernandes antes que algum funcionário precisasse me avisar do fim do expediente. Voltei à aula de rosto enxuto em tempo de minha saída estar dentro da faixa da ausência considerada aceitável.

É muito peculiar, mas é fato o que te digo agora. Apesar de eu ser mais voltada para o conto e o romance (e claro, as crônicas), não há ninguém que se dedique a esses gêneros que eu tenha vontade de encontrar pessoalmente para um longo papo, ou melhor, vários. É justo você, ruim de prosa, como você mesmo admite em entrevistas…é você a única pessoa viva  de trabalho artístico amplamente divulgado com a qual eu tenho necessidade de conversar.

Olá, único artista vivo como o qual eu tenho necessidade de conversar, como vai?

Por aqui, não vou muito bem não, sou vulcão de erupção eternamente adiada sob forte pressão interna e externa. Ando precisando fazer uma loucura.

A expectativa de uma conversa com você é a minha loucura.

Como vulcão de impulsos planejados, não é ainda granito, mas não mais magma incandescente, essa carta.

 

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