A cobrança da poesia

E a peça não teve bailarinas.

Muito menos uma bailarina hipopótama.

E a peça não teve corcéis negros que pulam de terraço a outro de prédios no centro velho de São Paulo.

O país não me deixou falar do sonho.

2016 teve o maior número de homicídios da história do país:  7 pessoas foram assassinadas por hora no Brasil.

Não tem sonho quando tem 7 assassinatos por hora (sem contar os  5 estupros por hora).

E minha peça não teve sonho.

Teve Creonte denunciado por corrupção.

Teve Antígona lutando por uma lápide digna ao irmão, procurando o corpo do irmão ocultado.

Uma Antígona que cava, cava, cava buscando, buscando e quanto mais cava, mais  faz valas que são usadas para abrigar os corpos das crianças da Maré ou da Rocinha ou da creche em Minas Gerais ou dos estudantes de Goiás.

Uma Antígona que não descobre o irmão embaixo da terra, mas que cobre com terra os corpos dos trabalhadores rurais do Pará, dos quilombolas da Bahia , os índios da Amazônia e moradores de rua de São Paulo.

E esta minha peça teve a leitura potente e linda de sete colegas que receberam o texto na hora, um texto terminado na véspera. Um texto que tinha certeza de que não seria terminado.

Terminada a dramática leitura , as colocações dos colegas  foram:

“Eu sinto falta de quando você escrevia de forma mais poética.”

“Eu me lembro do seu texto da bailarina.”

“E tinha também aquele texto dos cavalos.”

E eu, em choque, o que fazer se não quero e não consigo falar do sonho?

Foi só bem mais tarde que degustei as apreciações.

“Puxa, vocês queriam a bailarina? Eu posso dar ela sim.”

Não sabia que vocês queriam.

Desculpe não ter conseguido trazer ela agora.

E é assim que se resuscita uma personagem que eu já matei 4 vezes. E que, ironicamente, é o motivo de eu ter ido estudar dramaturgia: a bailarina que passa os dias processando notas ficais.

E  foi assim que, pela quinta vez,  essa bailarina de tule puído e sapatilha desgastada sai da sombra onde  eu a escondi, invade a minha visão periférica até se colocar bem na minha frente, sambando na minha cara (afinal, eu não a coloquei para treinar o balé clássico então ela vem sambando), ela vem majestosa e petulante, apontando o dedo e rindo “Você não vai se livrar de mim!”

E me pareceu estúpido não ter escrito ela, me pareceu triste não poder ter usado da escrita para dar algo a alguém agora.

Obrigada colegas da Escola Livre de Teatro de Santo André por terem me cobrado o sonho.

Ano que vem essa bailarina chega.