Na posta-restante – 2a

Quarta 4 de dezembro de 2019

Olá,

Como está?

Sim, sou eu de novo. Eu continuo consciente de que de como é ingênuo e bobo esta ação de lhe escrever. Mas talvez falte ingenuidade no mundo. Se continuarmos matando crianças e jovens, com certeza.

Ando oscilando entre refrear e liberar impulsos. A repressão é meu default, mas hoje os impulsos ganharam.

Reli a outra carta e vi que eu não expliquei porque você é o único artista vivo com o qual eu tenho necessidade de conversar.

Claro que eu gostaria de conversar com muita gente famosa, mas é uma curiosidade, uma vontade, um fetiche muitas vezes.

A questão é algo tão delicado quanto verdadeiro. Tenho medo de magoar pessoas queridas, já que esse texto também está no rótulo de mais uma garrafa à deriva nesse enorme oceano que é a internet. E decidi deixar pública uma carta particular na esperança de que alguém me entenda. Afinal, ambos sabemos que resposta sua eu não vou obter.

Sobre aquele professor, eu já tinha tido mostras anteriores de que não deveria esperar conexão dali, esperança vã. Em outra disciplina, o mestre e doutor em Fernando Pessoa nos brindava com análises maravilhosas e textos antes inéditos a mim. Deliciada e feliz compartilhei em alto e bom som para todos os presentes em sala que eu me sentia extremamente identificada com Álvaro de Campos (Pessoa, o segundo entre os mortos a quem perguntaria tanto!).

O professor riu.

O professor gargalhou.

O professor me disse “Se você se sente identificada com Álvaro de Campos fica longe de mim, hein! Quero distância!”

Até ali eu tinha certeza de que todas as pessoas já tinham se identificado com pelo menos um poema de Álvaro de Campos, e daí que justamente alguém que destrinchou todas as faces de Fernando Pessoa não.

Será que é por isso? Afinal, para analisar é preciso cortar por partes para melhor precisão de estudo. Separar as partes é matar o todo. Será por isso? Não sei. Não tive uma explicação só o deboche mesmo.

Recentemente comentei sobre esse episódio para um grupo de poetas que comecei a frequentar. Acharam um absurdo o comentário do professor e me senti acolhida.

Mas mesmo entre essas pessoas queridas e entre outras pessoas queridas eu sinto algo que falta.

E, com eles, por isso, me sinto em falta.

Devo ser eu a incapaz de se sentir realmente conectada.

“Não sei sentir, não sei ser humano,

Não sei conviver de dentro da alma triste, com os homens,

Meus irmãos na terra.”

E vou vivendo, em conversas, ações e expectativas quase…

Eu quase, quase humana.

Lendo e assistindo coisas, algumas que não gosto ou gosto pouco e tudo bem. Algumas que gosto muito, muito mesmo mas não da mesma forma que outras pessoas gostam, pois pra mim há muitas lacunas entre a ficção e o que eu sinto.

Quantas e quantas e quantas vezes nem a ficção me traduz.

É por isso que eu preciso aprender de verdade a escrever, para criar um mundo para mim.

Mas, enquanto isso…

A prosa de Clarice me traduz.

A poesia de Pessoa me traduz.

As obras que você assina me traduzem.

Mesmo quando eu “brigo” um pouco com a trama…

Não tem quase entre o que se concretiza e o que eu sinto nas obras que você assina.

E você está vivo.

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