Da vela ou dos fósforos

 

(…) Desde que, adulto,  comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

 Érico Veríssimo, 1973,  Solo de Clarineta vol 1.

 

A questão é:  qual é a minha vela?

Os tempos nunca ficam exatamente claros e límpidos, por isso as nuvens carregadas voltam logo. Ou é simplesmente cíclico. A volta da era conservadora, como analistas pontuaram. Tempos glaciais.

E o ciclo glacial ressuscita aquilo que deveria ficar conservado no gelo apenas pra estudos de paleontologia. Surras de cabo elétrico por mão do pai em meninas por não serem virgens, com aval de representantes da justiça. Homens da mesma “justiça” considerando válido “reorientar” indivíduos para a sexualidade padrão e entendida como única. Sendo assim consequência e causa que passa a assustadoramente validar o fechamento da exposição do QueerMuseu, afinal instituições financeiras buscam o lucro na onda que vier. Peça primeira do efeito dominó de censuras, ato contínuo de proibir que sejam exibidas e vistas peças de temática LGBT e quadro com o nome “Pedofilia”.

Todo esse  amplo quadro serve para que os ingênuos medrosos que aplaudem tais ações com suas mãos limpas sejam usados como cortinas blindadas da podridão. As mãos limpas do cidadão “de bem” (que acha que defende a família) constroem o telhado e as quatro paredes de intimidades de atrocidades. As mãos limpas não cometem o crime, mas auxiliam como cúmplices antes e após o ato.

Minha vela:  por enquanto ela mais sangra que ilumina.

É de grupo de whatsapp, grupo de “família”, a mesma família que fez de conta que a pedofilia não existiu entre os seus lindos laços de “amor”, que recebo as mensagens contra o ensino de “ideologia de gênero” e de “esquerdismo” na escola por que afinal somos “contra a inversão de valores e a favor da família e de um mundo melhor”. Leio isso e tenho vontade de vomitar.

Esses de mãos e caras limpas que se assustam com exposições, quadros, peças e a existência do amor diverso do seu são massa de manobra feliz do sistema que serve para que mulheres continuem recebendo, sem reclamar, porras em espaço público e esporros no espaço privado. Para que homens adultos continuem a enfiar mão, dedo e pênis em seios e vaginas de crianças, o problema afinal não é ação, é a representação escandalosa no quadro. E a sexualidade de meninas é sempre propriedade de um homem, que ideia absurda essa né, da mulher ser dona do seu próprio corpo!

São essas mãos limpas que apertam junto o gatilho ou empurram em trilhos do trem homossexuais, bissexuais, transgêneros, travestis que se suicidam ou são mortos pelos simples fato de existirem.

A  massa de ar glacial invade não só o interior das casas, os bairros, a cidade, o país e o mundo. Três dias seguidos de tiroteio na Rocinha, violência que atravessa a autoestrada fechando a circulação Sul-Oeste da cidade. Fica a pergunta, será que o Rio de Janeiro inteiro precisará ser sitiado para começarmos a pensar em soluções efetivas para a guerra do tráfico a médio e longo prazo? Será que agora, com a Lagoa-Barra bloqueada por um dia e não só escolas públicas, sempre sem aulas, mas três escolas particulares também fechadas nesta segunda-feira farão os cidadãos de bem e mãos limpas da classe média e alta perceberem que o problema também é com eles?

Os ventos sombrios e gelados sopram guerras internas que fazemos de conta que não é guerra. Como se os pobres deste país não tenham sido sempre exterminados em nome da ordem social. Mas sobram também indícios de guerras externas, o idiota que é presidente dos EUA vai na ONU prometendo exterminar a Coréia por causa dos desmandos do idiota que governa lá. Paralelamente, Irã testa mísseis. E enquanto, em terras tupiniquins, a gente não acompanha mais qual a é a denúncia da corrupção da vez, qual é direcionada a empresários, qual é para deputados ou senadores, governadores, ex-presidentes ou presidente, esse último aí, o nosso idiota em exercício do golpe vai na mesma ONU falar na “sempre defesa da democracia” com a melhor cara de peroba rosa bem envernizada. De tal modo que até invejamos a sinceridade transparente de Donald Trump.

E onde fica nisso tudo eu, pessoa que escreve e quer se firmar como escritora?

Onde fica a vontade individual de ser antes de se poder estar para?

Acho que voltei a Érico Veríssimo, há tanto tempo lido, para tentar me lembrar pra quê serve escrever.

É pesado não é?  Tentar se firmar no ofício das artes ao mesmo tempo que se tenta ser útil nessa arte. E só se é útil numa arte depois de dominá-la, ser muito bom nela, pois arte precisa de visualização, de público para existir.

Talvez tenha escrito isso dando as mãos a Veríssimo-pai para tentar não chegar  à fácil e rápida conclusão de que a escrita (a arte) é inútil.

Mas eu estou reclamando à toa, isso acontece em todo ofício, professores e médicos ruins também são inúteis e mais prejudicais que uma escrita ruim. Embora não mais prejudiciais que uma ideologia opressora que algumas escritas ajudam a disseminar.

É, na verdade vem junto, para qualquer ofício bem exercido: a prática da técnica e a ética em exercê-la.

 

 

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