Quando eu vi e senti o porquê

Eu ia continuar com Galeano, mas fui no correio. E lá, a magia da vida real brecou minhas crises intelectualoides.

Entrava no blog no horário cronometrado a postagem anterior, a crônica que fala de sou escritora no correio e enquanto isso…

eu fui escritora no correio.

E dessa vez eu não fui escritora por  levar textos para concurso literário. Estava lá com aquele estranho envelope, fechado à cera de vela. Carta a alguém que não conheço. Alguém que não espera receber palavras minhas, mas  receberá.

E talvez ser escritora e escritor é isso:  delinear palavras intrusas, palavras que podem ser bem recebidas, apesar de não terem pedido licença em vir.

Eu fui escritora no correio por ter sido lida pelos funcionários do correio.

E ali, eu, com minha carta já postada, eu que já não era mais cliente, mas esperando que os demais com senha não soubessem disso porque paramos a fila. Do outro lado do balcão amarelo um Beto tímido que me diz que leu sim a crônica que eu entreguei em mãos da minha última vez lá.

Eu, também tímida, nessa visita de entrega de um texto sem meu nome. Menos pela vaidade de ser lida, mais por entender o direito de Beto saber que foi personagem.

E o Beto “Espera uma pouco vou chamar meu supervisor”, quando ele chega, me apresenta “É ela que é a Mariposa”.

E, naquele agora, naquele ali, Beto não era mais o funcionário público nem Ramon era seu chefe, eram amigos, eram pessoas que leem e comentam o que leem. E ficam satisfeitos de trazer suas apreciações a quem escreveu, eu, do outro lado do balcão desbotado. Eu, mariposa, a identidade secreta do pseudônimo revelado.

Naquele ali feito agora, valeu a pena ter escrito aquelas linhas lidas. Entendi Galeano no palpável do sorriso de trabalhadores, prestes a precisar pedir direitos numa greve, que despem o fardo do funcionalismo público para alegria de se colocarem. Na minha alegria de ter levado alegria, nós quatro  – a atendente do lado também ouvindo curiosa- nós quatro num raro momento de pausa qualitativa na rotina.

Experimentei ali as finalidades do meu ofício.

Feliz, não precisei retomar o debate com Galeano.

Nem deuses nem insetos

Trecho de “A descoberta da América (que ainda não houve)” de Eduardo Galeano

Minha crise não se satisfez com Érico Veríssimo, fui buscar drogas mais pesadas. Reencontrei Galeano.

 Não compartilho a atitude dos escritores que se atribuem privilégios divinos não outorgados ao comum dos mortais, nem a atitude dos que batem no próprio peito e rasgam as próprias roupas pedindo o perdão público por viver a serviço de uma vocação inútil.

Esse texto é de 1976. Desconheço autores nacionais atuais que estejam pedindo perdão por serem escritores e assim, não mudarem a realidade. Isso é bom ou ruim?

Ou seja, os escritores de hoje interiorizaram qual é o papel de seu trabalho no mundo, ou estão vivendo de glórias nas suas masmorras de mármore contando dinheiro ou troféus enquanto, ao rés do castelo,  tudo desmorona?

Nem tão deuses, nem tão insetos.

Eu dizia por aí, antes de ler esse texto, que as pessoas que eu encontrava que eram escritores ou se consideravam grandes deuses ou grandes merdas. Mas eu não disse no sentido que Galeano atribuiu, e sim  entre os que achavam que escreviam muito bem e todos os demais seres humanos nunca escreveriam como ele(a), ou iniciantes na escrita com baixa autoestima – geralmente causada por oficinas dadas pelos escritores que se acham Deuses.

Claro, também tem os iniciantes que se acham Deuses. Sabe a pessoa que exige que amem a sua arte porque ela “está se expressando?” Como se explica para um ser humano que “se expressar” não é importante?

Desculpe. Reformularei. De um ponto de vista individual, de uma necessidade psicológica e subjetiva, “se expressar” é importante, claro. Mas só “se expressar” não é arte.

Os iniciantes-Deuses só não são insuportáveis de se conviver porque a empatia é imediata. Se a sociedade não fosse um lugar de mutilar subjetividades ou solapar individualidades com rolo compressor não tinha tanta gente se dizendo artista só porque “olha só escrevi algo que nem sei como veio, não parece eu”.

Miga, migo, escrever algo legal que você sinta de alguma forma destacado de você é só o início. Todo mundo que escreve passa por isso. É legal, eu sei. Curta e sinta O INÍCIO.

Mas, como disse, não foi nesse sentido que Galeano opôs Deuses a insetos, é na linha da crise da postagem anterior.

Nem tão deuses, nem tão insetos. A consciência de nossas limitações não é uma consciência de impotência: a literatura, uma forma de ação, não tem poderes sobrenaturais, mas o escritor pode ser um pouquinho mais mago quando consegue que sobrevivam, através de sua obra, pessoas e experiências que valem a pena.

Se o que escreve não é lido impunemente e muda ou alimenta, de alguma forma, a consciência de quem lê, o escritor pode reivindicar sua parte no processo de transformação: sem prepotência nem falsa humildade, e sabendo-se pedacinho de algo muito mais vasto.

Preciso não me esquecer que a literatura é uma forma de ação.

 

Da vela ou dos fósforos

 

(…) Desde que, adulto,  comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

 Érico Veríssimo, 1973,  Solo de Clarineta vol 1.

 

A questão é:  qual é a minha vela?

Os tempos nunca ficam exatamente claros e límpidos, por isso as nuvens carregadas voltam logo. Ou é simplesmente cíclico. A volta da era conservadora, como analistas pontuaram. Tempos glaciais.

E o ciclo glacial ressuscita aquilo que deveria ficar conservado no gelo apenas pra estudos de paleontologia. Surras de cabo elétrico por mão do pai em meninas por não serem virgens, com aval de representantes da justiça. Homens da mesma “justiça” considerando válido “reorientar” indivíduos para a sexualidade padrão e entendida como única. Sendo assim consequência e causa que passa a assustadoramente validar o fechamento da exposição do QueerMuseu, afinal instituições financeiras buscam o lucro na onda que vier. Peça primeira do efeito dominó de censuras, ato contínuo de proibir que sejam exibidas e vistas peças de temática LGBT e quadro com o nome “Pedofilia”.

Todo esse  amplo quadro serve para que os ingênuos medrosos que aplaudem tais ações com suas mãos limpas sejam usados como cortinas blindadas da podridão. As mãos limpas do cidadão “de bem” (que acha que defende a família) constroem o telhado e as quatro paredes de intimidades de atrocidades. As mãos limpas não cometem o crime, mas auxiliam como cúmplices antes e após o ato.

Minha vela:  por enquanto ela mais sangra que ilumina.

É de grupo de whatsapp, grupo de “família”, a mesma família que fez de conta que a pedofilia não existiu entre os seus lindos laços de “amor”, que recebo as mensagens contra o ensino de “ideologia de gênero” e de “esquerdismo” na escola por que afinal somos “contra a inversão de valores e a favor da família e de um mundo melhor”. Leio isso e tenho vontade de vomitar.

Esses de mãos e caras limpas que se assustam com exposições, quadros, peças e a existência do amor diverso do seu são massa de manobra feliz do sistema que serve para que mulheres continuem recebendo, sem reclamar, porras em espaço público e esporros no espaço privado. Para que homens adultos continuem a enfiar mão, dedo e pênis em seios e vaginas de crianças, o problema afinal não é ação, é a representação escandalosa no quadro. E a sexualidade de meninas é sempre propriedade de um homem, que ideia absurda essa né, da mulher ser dona do seu próprio corpo!

São essas mãos limpas que apertam junto o gatilho ou empurram em trilhos do trem homossexuais, bissexuais, transgêneros, travestis que se suicidam ou são mortos pelos simples fato de existirem.

A  massa de ar glacial invade não só o interior das casas, os bairros, a cidade, o país e o mundo. Três dias seguidos de tiroteio na Rocinha, violência que atravessa a autoestrada fechando a circulação Sul-Oeste da cidade. Fica a pergunta, será que o Rio de Janeiro inteiro precisará ser sitiado para começarmos a pensar em soluções efetivas para a guerra do tráfico a médio e longo prazo? Será que agora, com a Lagoa-Barra bloqueada por um dia e não só escolas públicas, sempre sem aulas, mas três escolas particulares também fechadas nesta segunda-feira farão os cidadãos de bem e mãos limpas da classe média e alta perceberem que o problema também é com eles?

Os ventos sombrios e gelados sopram guerras internas que fazemos de conta que não é guerra. Como se os pobres deste país não tenham sido sempre exterminados em nome da ordem social. Mas sobram também indícios de guerras externas, o idiota que é presidente dos EUA vai na ONU prometendo exterminar a Coréia por causa dos desmandos do idiota que governa lá. Paralelamente, Irã testa mísseis. E enquanto, em terras tupiniquins, a gente não acompanha mais qual a é a denúncia da corrupção da vez, qual é direcionada a empresários, qual é para deputados ou senadores, governadores, ex-presidentes ou presidente, esse último aí, o nosso idiota em exercício do golpe vai na mesma ONU falar na “sempre defesa da democracia” com a melhor cara de peroba rosa bem envernizada. De tal modo que até invejamos a sinceridade transparente de Donald Trump.

E onde fica nisso tudo eu, pessoa que escreve e quer se firmar como escritora?

Onde fica a vontade individual de ser antes de se poder estar para?

Acho que voltei a Érico Veríssimo, há tanto tempo lido, para tentar me lembrar pra quê serve escrever.

É pesado não é?  Tentar se firmar no ofício das artes ao mesmo tempo que se tenta ser útil nessa arte. E só se é útil numa arte depois de dominá-la, ser muito bom nela, pois arte precisa de visualização, de público para existir.

Talvez tenha escrito isso dando as mãos a Veríssimo-pai para tentar não chegar  à fácil e rápida conclusão de que a escrita (a arte) é inútil.

Mas eu estou reclamando à toa, isso acontece em todo ofício, professores e médicos ruins também são inúteis e mais prejudicais que uma escrita ruim. Embora não mais prejudiciais que uma ideologia opressora que algumas escritas ajudam a disseminar.

É, na verdade vem junto, para qualquer ofício bem exercido: a prática da técnica e a ética em exercê-la.