Dentro e diante

Ela vai falando, falando e a outra ela ouve, às vezes não ouve, às vezes responde porque recusa o monólogo e a resposta é mal recebida com um “Não é isso, você não entendeu” estúpidos. E é muito estranho um sentimento em voz alta ter como recepção “Você não entendeu” “Não é isso”. Como a emoção de alguém pode não ser certa?

A outra ela é sempre corrigida no que sente. A boca de batom com dentes bem cuidados fala sobre o que vê, o que fez das horas, fala sobre o dia da primeira ela, e a primeira ela gosta de ouvir o que  estas bocas e dentes têm a considerar sobre o mundo e ela, a primeira, a que nunca se cala.

No momento que a outra ela deixa escapar por entre  muros as gotas coloridas que escorrem do seu olhar o “Não, não é isso” é mão que tapa a boca do sorriso e a nudez da sua alma se dobra sobre si como um corpo que não dança.

A outra ela já não tenta mais. Recorda que o seu lugar ali é o de orelha. A boca se cala e fala o esperado e o olhar se volta para campos de vegetação rasteira, de uma leve névoa, com seus chalés de inverno…ou para  a praia. A outra ela gosta muito da praia. Agora, neste momento, a primeira ela pede, de novo, que a segunda repita uma observação inteligente que esta fez do cotidiano daquela. Enquanto fala, autômato, da vida da outra, a outra ela enxerga, deantre de si, a enseada e o forte de Copacabana.

(Agosto de 2016)

Destino

Entrar.

Liberdade.

Andar.

Liberdade.

Descer.

Liberdade.

Abriu.

Liberdade.

Sentar.

Liberdade.

Voz fanhosa. Fé?

Muita gente.

Apertar.

Continua.

Cochilar.

Carandiru.

Levantar.

Carandiru.

Abriu.

Carandiru

Não sair.

Carandiru.

Tocou.

Carandiru.

“Você está atrasado…”

Sinal sonoro.

Carandiru.

“Ah você está no metrô? Tá chegando então…”

Fechou.

Carandiru.

Santana.

Jardim São Paulo.

Parada Inglesa.

Tucuruvi.

Parada Inglesa.

Jardim São Paulo.

Santana.

Carandiru.

Vibrou.

Não atender.

Portuguesa.

Armênia.

Tiradentes.

Vibrou.

Desligar.

Luz.

São Bento.

Sé ( e não fé…)

Liberdade. (liberdade?)

Cochilar.

Paraíso?

Santa Cruz. (é mais provável…)

Tiradentes Armênia  Portuguesa  Carandiru  Santana  Jardim São Paulo  Parada Inglesa Tucuruvi   Parada Inglesa   Jardim São Paulo   Santana   Carandiru   Portuguesa – Tietê (era melhor quando era só Tietê)  Armênia  Tiradentes  Luz   São Bento ( iluminação é algo que só os santos têm…)  Sé   Liberdade   São Joaquim   Vergueiro    Paraíso   Ana Rosa   Vila Mariana (por  onde anda a Mariana?) Santa Cruz  Praça da Árvore   Saúde   São Judas   Conceição   Jabaquara

Jabaquara.

ConceiçãoSãoJudasSaúdePraçadaÁrvoreSantaCruzVilaMarianaAnaRosaParaísoVergueiroSãoJoaquimLiberdadeSéSãoBentoLuzTiradentesArmêniaPortuguesaTietêCarandiruSantanaJardimSãoPauloParadaInglesaTucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasanta cruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquaraconceiçãosãojudassaúdepraçadarvoresantacruzvilamarianaanarosaparaísovergueirosãojoaquimliberdadesésãobentoluztiradentesarmêniaportuguesatietêcarandirusantanajardimsãopauloparadainglesatucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasantacruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquaraconceiçãosãojudasaúdepraçadarvoresantacruzvilamariananarosaparaísovergueirosãojoaquimliberdadesésãobentoluztiradentesarmêniaportuguesatietêcarandirusantanajardimsãopauloparadainglesatucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasantacruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquara

“este trem não prestará serviço” “atenção: este trem será recolhido” “este trem não prestará serviço” “este trem não prestará serviço” “este trem não prestará serviço” “…prestará serviço”” (prestará)

(prestará?)

“Senhor, é preciso sair, este trem não prestará serviço”

(é preciso sair)

(é preciso sair)

Sair.

O trem recolhido. Acolhido?

‘A faixa amarela é a sua segurança’

(Segurança)

(SEGURANÇA)

(Segurança???)

(o vão dos trilhos é canyon da metrópole)

{     }

(é bonito também. é sim, qualquer limite seduz…)

(limite- limiar , limiar de vida, por quê vida? é preciso sair. sair. sair da vida)

(… o limite seduz…)

{      }

(a faixa amarela é limitação, a limitação não interessa)

{     }

{    }

{    }

{  }

{}

}

Portas que se abrem.

Entrar.

Sentar.

Conceição.

São Judas.

Saúde.

Praça da Árvore.

Santa Cruz.

Vila Mariana.

Ana Rosa.

Paraíso.

Vergueiro.

São Joaquim.

Liberdade.

Levantar.

Liberdade.

Sair.

Liberdade.

Subir.

Liberdade.

Andar.

Liberdade.

Chegar.

Liberdade.

Dormir.

Liberdade.

Sonhar.

liberdade…

Acordar.

realidade.

(Junho de 2012)

Nossa cadência é sem Y ou W

( Cena que fez parte da leitura dramática de 22 de novembro de 2016 da Mostra de Processo do Núcleo de Dramaturgia  do CLAC  – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, que hoje não existe mais, pois a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores.

 

Esta cena foi escrita dentro da proposta da dramaturga e professora Solange Dias de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Porém, como, hoje, o Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo não existe. Este e outros projetos se perderam.)

 

Não na cabeça, nas mãos, o quepe dançava. Amarelo pálido como o resto do uniforme. Amarelo pálido como os raios de sol que vencem a névoa. Tinha a função de barrar estas irradiações. Mas alguns objetos são como pessoas, extrapolam as funções esperadas. O quepe,  excelente dançarino! O sol de janeiro também é ardido na cidade da neblina, mas o rapaz não se importava, preferia o movimento. Em suas mãos, qualquer coisa dançava.

 

CARTEIRO

“ Universal

sal

nível

unir… …universo não dá, não tem O

nu

nua

vi

ver

ali

irá

ler”

 

CARTEIRO

“Warner

ar

erra

arre!

W é letra dura, sem gingado…

na? né ?

Palavra chata que não dança, fica no canto do baile como moça soberba que não aceita nenhum  par.”

 

CARTEIRO  (interpela passante)

“Ô moço, por favor…onde é a rua Tietê? Já andei tudo por aqui e não achei.”

 

HOMEM

“ Ué, carteiro que não sabe as ruas?”

 

CARTEIRO

“ É meu segundo mês, moço, e eu não fazia este bairro.”

 

HOMEM

“ Qual a rua?”

 

CARTEIRO

“ Tietê.”

 

HOMEM

“Por aqui não tem nenhuma rua com este nome não.”

 

CARTEIRO

“ Mas separaram esta carta aqui da Tietê neste malote…o senhor é do bairro?”

 

HOMEM

“ Sou. Sei do que estou falando. Moro uma quadra acima daquela praça, na…

 

CARTEIRO

(interrompe)

(pronuncia em português) “ Na Universal?”

 

HOMEM

(pronuncia em inglês de Universal)

“É…na Universal… Aqui não tem nenhuma rua Tietê.”

 

(Uma mulher aparece carregando sacola de feira com compras de mercearia, ouve a conversa e corrige)

MULHER

“ Ô homem de Deus,  não fale besteira, e a Tietê não fica logo ali?”

 

HOMEM

“ Como? Não!”

 

MULHER

“E eu não moro nela?” Logo ali”

 

(A mulher fala andando,  o carteiro, interessado, e o homem, intrigado, a seguem até a esquina)

 MULHER

“ É aqui, qual é o número que você precisa?”

 

Para a existência garantir, precisamos de números e precisamos de nomes. As casas tinham números e a rua tinha um nome. Exibida na esquina, a placa era a certidão de nascimento. Amassada como nenhuma outra, mais amarrotada que papel ordinário. Entre as marcas das pedradas no ferro podia-se ler um T e um E, mas também um W e um Y.

 

HOMEM

“Mas ali não está escrito Tietê!”

 

CARTEIRO

(lendo devagar) “T w e n t y. Twenty. Essa com certeza não samba!”

 

MULHER

“Sei ler, não. Pra mim não faz diferença o que está escrito. O que eu sei é que esta aqui é a rua Tietê, sim senhor.”

 

HOMEM

“Povo ignorante! Essa é a rua Twenty! Olha só o nome das outras… Warner, Paramount, Universal. Olha o nome do bairro: Jardim Hollywood. As ruas são nomes de estúdio de cinema. Essa é a rua da Twenty Century Fox, meu favorito aliás.

 

CARTEIRO

(pergunta ao mesmo tempo que mulher fala) “Gosta de cinema?”

 

MULHER

(fala ao mesmo tempo que homem responde) “Rua o quê? Tue..”

 

HOMEM

(responde ao mesmo tempo que mulher tenta imitar som) “Muito, sou um cinéfilo. Você não?”

 

MULHER

(finaliza ao mesmo tempo que carteiro replica) “sem foz? O que é isso?”

 

CARTEIRO

“Acho caro.”

 

 HOMEM

“Twenty Century Fox , mulher, é o grande estúdio de cinema americano, lá de Hollywood, sabe Hollywood? O nome significa ‘além do século vinte’. O nome do bairro e das ruas homenageiam Hollywood.”

 

MULHER

“ Roliúdi!!!” (se vira para o carteiro) “O que você acha  disso?”

 

CARTEIRO

“ Difícil,  com  W, Y não se sai do lugar… H é letra que precisa de ajuda pra rodar.”

 

MULHER

“Rodar…quem roda é a gente, rua da gente tem que ser na língua da gente, (petulante) bairro com nome de estúdio de cinema dos states! quem decidiu isso? Essas coisas com nome estrangeiro, não orna.”

 

CARTEIRO

“Olha, acho que a senhora está certa, o Roliúdi daqui é com R,  O ,  L,  I ,  U ,  D  e  I  e acento no u”

 

HOMEM

“Eita, não olhem pra mim, eu só li e expliquei o que estava escrito!”

 

O carteiro, precisando cumprir seu ofício, entrelaçou o número da carta às letras da conversa e achou a moradora destinatária de tão polêmica correspondência. Como teve muito que perguntar “É a senhora a senhora Joana Ribeiro? Que espera notícias de São José do Rio Pardo?”Com o sim, sim, ganhou café e bolo. Missão cumprida. Endereço certo é o do caminho que acha o seu destino.

 

MULHER

“Destino da gente é a gente que faz.”

 

Como as pedradas dos moleques foram esburacando, e não era mais quase possível ler o W ou o Y, para quem lia. Como as incisivas vogais foram matando, e não era mais possível ouvir som estrangeiro, para quem o distinguia. Aquela ficou sendo a rua Tietê e pronto.

 

 

CARTEIRO

“Voz do povo é voz de Deus.”

 

A tábua divina apareceu em forma de placa com todas as letras de Tietê, sem faltar e sem sobrar nenhuma, registrando no civil o nome que a saliva do povo já tinha ungido em batizado.

 

Aquilo que está certo

( Cena escrita em maio de 2016 no Núcleo de Estudos Cênicos  do CLAC  – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, que hoje não existe mais, pois a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores.

 

Esta cena foi resultado de um exercício de observação da praça São José e arredores do bairro Baeta Neves, como parte do processo de escrita dentro do projeto de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade, proposta da dramaturga e professora Solange Dias. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Como não há mais CLAC, este e outros projetos se perderam.

 

Uma das propostas do Núcleo de Estudos Cênicos era “escrever nas terças e encenar nas quartas”, eu demorei um pouco para entender o que o Miguel Prata estava querendo com nossos textos, e que não saberei explicar aqui, por ignorância ao termos técnicos teatrais. Mas basicamente, a carta da Mari que era super doce ele propunha “Mari, você vai ler esta carta bem devagar, passando o lápis por cima de cada letra, como se estivesse escrevendo e falando”. O texto da Gabi, que tinha uma personagem que falava de acumular ou não as coisas, ele propôs que ela fizesse sempre pegando um novo objeto, e lá foi a Gabi, falando duas frases e pegando um sapato, mais duas frases e segura três rolos de papel higiênico, três frases e pega blusa, quadrado de EVA. Gabi tinha que equilibrar a memória e as quinquilharias. E por aí vai, a Tati teve que falar seu texto arrumando um varal, buscando e arrumando cadeiras.

 

A proposta com o meu texto era que eu o lesse andando sem parar pelo espaço. Como eu eventualmente parava, Miguel se colocou atrás de mim, me pressionando para que eu continuasse. Minha primeira reação foi dar gargalhadas porque é muito estranho andar com alguém te empurrando continuamente, no momento que entendi e peguei o ritmo, ele me largou. Quando completamente exausta de dar voltas, Miguel me incentivava, “Continua daí, usa a exaustão!” e eu continuava, “Isso, continua com essa voz!”, e eu pensava “Que voz?”, não tinha percebido que minha voz estava completamente diferente. Colegas e professor diziam “Nossa, eu vi um homem aí”, “E ela não forçou a barra para ser um homem”. Eu não estava entendendo muito não “Como vocês viram um homem? Eu não mudei de roupa, não prendi o cabelo…”.

 

A epifania ali foi de aprender que meu corpo muda um texto. É meio bobo dizer isso porque atores são isso, corpos que imprimem sentidos a um texto. O principal, na verdade, foi perceber que o MEU CORPO era capaz de adicionar camadas de sentidos a um texto. Justo eu, tão acostumada a escarafunchar sentidos com as palavras e apenas com as palavras.)

 

 

Aquilo que está certo

 

“Eu acho que tá certo sim. Tá certo porque ia melhorar muito aqui pra gente. Larga de ser assim, homem, e perceba. Ia melhorar sim, pra começar não ia ter esse monte de merda de cachorro espalhada por tudo que é lado, as pessoas iam ter que olhar seus bichos, recolher o cocozinho…Sua vez.”

“Cachorro de rua não ia entrar, ué.”

“Mas o melhor é que não ia ter esse povo sujo largado por aí. Dormindo em banco da praça….bêbado. Praça não é pra isso.”

“Tô te dizendo que ia melhorar porque a Igreja ia ter mais paz. Não ia precisar ter cachorro de raça…”

“Como eu sei que é de raça, ora um bicho desses, esqueci o nome…mas um bicho desses custa 7 mil reais. Mas não me interrompe, homem e joga que é sua vez de novo…”

“Então, sabe o bazar beneficente? Esse povo aí já entrou e pegou coisa. É pegaram sim. Pegaram uma toalha e a folhinha do dízimo.. o o calendário… Roubaram mesmo. E ficam espalhando essas coisas aí, sujando a praça. A toalha tá lá, no gramado. E o bazar acontece cedo, de manhazinha… e termina umas três, quatro. Mas vagabundo pra roubar não tem horário.”

“Não eu não vi, mas me contaram…e foi depois disso que a Igreja passou a ter os cachorros. ”

“Você é muito burro, não é questão de pegar ou não a toalha de volta. É esses marginais aí achando que podem ficar vagabundando e achando que pode pegar as coisas na Igreja. E quem ia querer de volta uma toalha imunda, usada por essa gente porca? E sabe onde tá esse calendário? Pregado numa árvore. Isso eu vi. Tava aí com meu dálmata e ele deu uma corrida, me deu uma canseira e parou para fazer seu xixizinho numa árvore de tronco grosso, fui encostar, num bate um negócio na minha cabeça? Fui ver, era a folhinha…Vê se pode a sagrada família pregada numa árvore? Que sacrilégio…Com guarda não ia ter nada disso aí.”

“Eu sei o que o Pedro pensa…olha eu gosto muito do Pedro, gosto mesmo, conheço ele há mais de vinte anos, eu era moleque e o Pedro vinha ensinar  a gente a fazer pipa, o Pedro sempre gostou de ficar com as crianças…mas o Pedro é um velho ingênuo. Ele acha que vive no tempo de antigamente, de cidade pequena em que as coisas eram calmas. O Pedro não tem noção, fica todo dia na praça perto dos mendigos…até conversava com eles! Ele não gosta que assim a praça vai ter horário pra fechar, claro que vai ter horário pra fechar, guarda tem família tem hora de embora, aí eles trancam o portão e acabou o expediente deles. Porque se não trancar o portão também não vai adiantar ter portão, os mendigo vai entrar no mesmo jeito.Olha tem até que tomar cuidado pra ver se eles não vão pular o portão pra dormir…bom, mas aí a policia vem de manhã dá uma coça neles…Se os guardas fechar às 18h, qual o problema? O Pedro já fica a manhã e tarde toda na praça para quê mais?… Olha a gente aqui por exemplo, jogando o nosso xadrezinho, se a praça ficar aberta das 8h às 18h pra quê mais? Cê precisa jogar xadrez fora desse horário? eu também não. E se precisar, compra um tabuleiro e leva pra casa que este não dá porque é grudado no cimento haha. O que esse velho fica fazendo fora de casa o dia todo? Tinha mais que ficar em casa olhando melhor a neta dele, essa menina, vou te contar, fica aí andando pra cá em prá lá de vestido curto, atravessando o bairro todo para ir pra casa de vizinha. Pra fazer o quê? Em vez de ficar em casa ajudando mãe no almoço, fica perambulando por aí, boa coisa não tá fazendo. Aí tem hora que ela arrasta o irmão junto, pra disfarçar que faz alguma coisa. Quando eles estão na praça, o Pedro chama os netos e eles não vem, vê se pode! se fosse neto meu e neta minha, eu chamava, vinha na hora, que falta de respeito! … Vai ser bom pro Pedro também, pra sair dessa praça e ir botar autoridade nos netos….. As pessoas não tem noção. Outro dia uma mulher não parou o carro pra pedir informação pros mendigo?  Olha o perigo! Com os guardas aqui ia ter mais segurança. A gente ia ter tranquilidade”

“Você acha que tá tudo tranquilo porque não presta atenção. Esta tranquilidade aqui é de mentira porque não tem segurança…Os mendigo tão tudo lá do outro lado, com aquele monte de garrafa… … e daí que é de catchup, praça também não é lugar de ficar espalhando comida.. e esse monte de cachorro perdido que pode morder qualquer um? Esse povo aí que tá sentado… o Pedro lá… tudo sem noção do perigo. Não é porque tem mais árvore que gente que não tem perigo. Certa mesmo é a caseira da Igreja que tranca o portão depois da missa e só abre pro pessoal que trabalha lá….Eu sei por causa do movimento da padaria, ia aumentar se tivesse segurança. As pessoas não vão lá almoçar por que não tem segurança. Aí outro dia me apareceu um sujeito Vê se pode, 11h45 da manhã o cara senta fica parado um tempão e só pede um cafezinho.Fui lá perguntar se ele não ia almoçar…tava ali sem fazer nada.. É esse povo do teatro que não tem dinheiro, eu sei porque eu já vi esse cara chegando lá… CLAC o que quer dizer isso? Se a gente tivesse segurança o faturamento da padaria ia melhorar, ia aparecer clientela que vai realmente consumir…Tô pensando agora, tem que tomar cuidado pros mendigo não sair da praça e ir ficar no teatro, esse povo d-a-s a-r-t-e-s também não tem noção, tem umas ideia torta, deixa os mendigos ficar lá na porta..faz cada uma… outro dia não tô saindo de casa, e eu sempre pego aquele pedacinho ali que é contramão…minha casa tá a 200m da rua que eu vou descer, tem só um pedacinho contramão. Vou dar a volta inteira na praça, cê acha? Pego só aquele pedacinho ali, não acontece nada, não tem ninguém…quase não tem carro aqui. E não é que tinha uma menina tirando foto com o celular num dia que eu tava saindo? Fui falar com ela, perguntei se ela era do trânsito, dei uma de joão-sem-braço, ela era muito novinha pra ser fiscal…disse que não sabia que a  rua era contramão e que tinha entrado sem querer, ela foi e falou que era do teatro e tirava foto pra uma pesquisa do bairro…cê acredita?, isso é baela, é esse povo que não tem nada o que fazer e fica olhando a vida dos outros e fica colocando foto de carro com a placa na internet. Cê nunca viu?  Povo fica colocando foto na internet de carro que para nessas vagas aí, de idoso, de deficiente, vai cuidar da sua vida! Se em ônibus ou trem não tem problema sentar nas vagas reservadas se não tem idoso ou deficiente ou mulher grávida ali porque cismaram com as vagas de carro…bom, eu acho que a menina acreditou em mim porque não apareceu foto do meu carro em lugar nenhum… … o bom  é que esse povo do teatro não vota, mendigo também não, não é morador de bairro…quem mora na rua não é morador de bairro.. não vota…então amanhã na Associação eu acho que vai passar sim e tá certo, a maioria é a favor, porque a maioria é gente de bem, tem que cercar a praça sim, por guarda… vou te falar, pessoal de bem que é a favor de cercar e por guarda na praça, quem é contra é pessoa que não tem a vida muito certa não.”

Cena que inclua a memória do Baeta

(Cena escrita em maio de 2016 no Núcleo de Estudos Cênicos  do CLAC  – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, que hoje não existe mais, pois a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores. Esta cena foi resultado de um exercício pós pesquisa, feita com todo o grupo no Centro de Pesquisa e Memória de São Bernardo do Campo e tem como objetivo o que o título diz.

 

A pesquisa e escrita eram parte do projeto de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade, proposta da dramaturga e professora Solange Dias. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Como não há mais CLAC, este e outros projetos se perderam.)

 

O prédio, de portão aberto mas de porta fechada, tem a indicação E.E. Dr. Baeta Neves. Um menino e um senhor idoso passam o portão. O menino, como todos os meninos, é ligeiro e está à frente, o senhor caminha com alguma dificuldade, mas sem bengala. Esperam que o portão interno abra, se apresentam na secretaria, esperam. Esperam. Esperam. Esperam.

Até que são encaminhados para uma sala, nela 11 pessoas estão sentadas ao redor de uma grande mesa.

Diretora – Boa tarde.

Senhor – Boa tarde.

Menino (amuado) – ….

Diretora – Então, estamos aqui para resolver a situação do João Vitor, o senhor é o o… representante da família? o nome do senhor?

Senhor – José Aparecido.

Diretora – E o senhor é avô do João Vitor?

Senhor José Aparecido – Bisavô.

Diretora – Certo…então, seu José Aparecido, primeiro os professores vão falar, explicar a visão deles e depois é a vez do senhor e do João.

Começa-se em sentido horário, a professora que estava ao lado da diretora na mesa é a primeira a falar.

Professora de matemática –  O João Vitor não respeita professores, colegas, não faz a lição. Levanta a toda hora e sai da sala quando bem entende, é desbocado, é palavrão a toda hora…não tem condição…

Professor de geografia – É isso, não tem jeito com o João em sala, não copia nada da lousa, nem isso ele faz, o caderno dele de geografia deve estar todo em branco…

Professora de ciências  (interrompendo) – De qualquer matéria…

Coro – De qualquer matéria…

Professora de inglês – Eu nem sei se ele tem caderno, nunca vi.

Professora de português (que estava se segurando) – Olha a gente tem que deixar claro que não é uma questão de  “Ah o João Vitor é agitado”, “Ah, não faz a lição” porque isso metade dos nossos alunos não fazem, o problema é que o João cria brigas. Esta semana, na minha aula, um aluno se levantou para me mostrar caderno e tropeçou no João que, como sempre, estava de pé, passeando pelas carteiras. E ele não me deu um soco no outro? Aí você pergunta “João por que você fez isso?” “Ô, fessora, ele pisou no meu pé de propósito.”

Professora de história (completando afoita e lá se foi o sentido horário) –  É, ele provoca os colegas, o colega tá lá quieto e o João vem pegando estojo do outro, puxando cabelo, passando branquinho na cara…

Professora de educação física – Nem na quadra esse menino tem sossego, chuta a bola pra longe, pro telhado de propósito..

Professor de geografia – Fica no celular a aula inteira….

Professora de história – Olha, eu até prefiro que ele fique no celular porque aí ele fica quieto, se ele não tá no celular ele tá levantando toda hora, enchendo os outros…

Diretora – Então João Vitor, o que você tem a dizer sobre tudo isso que você está ouvindo?

Menino João Vitor (cabisbaixo) – …

Diretora  (em tom conciliador) –  Então João, essa é a hora para você se explicar.

Menino João Vitor (sem levantar a cabeça) – …

Senhor José Aparecido (calmo) – Vamo, minino, peça desculpa…

Menino João Vitor (ainda sem levantar a cabeça) – …

Senhor José Aparecido – Ele vai milhorar, viu?!

Diretora – Todas as chances já foram dadas…

Senhor José Aparecido – Mas ele vai milhorar, ele também é assim arisco na casa dele, mas ele tá melhorando aos bocadinhos…

Diretora – O senhor entende o que estamos fazendo aqui?

Senhor José Aparecido – Sim, e acho muito bom, muito bom que é pra ele ouvir e passá essa vergonha que ele tá passando com tudo que é professor junto falano o que ele apronta que não é pra ele vim dizê que é mintira.

Diretora – Então o senhor concorda com que estamos fazendo?

Senhor José Aparecido – Sim, e acho muito bom, porque só assim pro mininu melhorá.

Diretora – Então vamos começar a votação para ver quem é a favor de que o João Vitor seja convidado a se matricular em outra escola.

Senhor José Aparecido (desconfiado)– Num entendi.

Diretora – Então, nós estamos aqui para decidir se o João vai ou não continuar estudando aqui.

Senhor José Aparecido (um pouco agitado) – E o mininu fica sem iscola?

Coordenadora – Nós vamos ajudar a conseguir matrícula em outra instituição.

Senhor José Aparecido  (agitado)– Mas aqui o mininu tá do lado de casa, como vai sê isso? E pra quê isso? Num tô gostano dissu não.

Diretora – Mas, senhor José, o senhor disse que concordava com o que estamos fazendo aqui.

Senhor José Aparecido – Acho bom vocês tudo falano pro pro mininu melhorá… saí da iscola num vai milhorá…

Diretora  (afirmativa) – Mas ele vai pra outra escola.

Senhor José Aparecido (negaceando com a cabeça) – Mai num vai milhorá…

Professora de matemática – Olha, seu José, às vezes uma escola longe é até bom, pra assim dar valor. Eu imagino que o senhor não teve escola perto de casa.

Senhor José Aparecido (sério) – Não, sempre morei aqui mas discia isso tudo i andava , andava para estudar no Iracema…

Professora de história – No Iracema Munhoz, no centro?

Senhor José Aparecido (assentindo com a cabeça) – E eu mi matriculei sozinho, tinha 12 anos…

Professor de geografia (interrompendo) – Isso porque o senhor valorizava o estudo, se o João tivesse que andar tudo isso ia valorizar o estudo…

Coordenadora – Gente, estudar perto de casa é direito garantido por lei..

Professora de ciências – Mas não é isso que ele quer dizer…tem o Fornari logo ali, vai estar perto também..

Coordenadora –  (fala em cima da professora) Tem que ver se o Fornari tem vaga…

Professora de ciências  (fala em cima da coordenadora) – O que a gente quer dizer é que estas crianças ganham tudo de mão beijada, é livro, caderno, lápis do governo, se não fosse tudo tão fácil eles iam valorizar o estudo.

Professora de matemática – O senhor que é sério, trabalhador, com certeza valorizou o que teve porque era difícil…

Senhor José Aparecido (professoral) – Olhi sou pai de família, trabalhador… aposentado, mais trabalhei muito…mas aprontei muito tamém…

Professor de geografia (mais conciliador) – Todo moleque apronta um pouco…

Senhor José Aparecido – Mas eu aprontei muito, muito e de moço, muita briga e briga de faca…tamém num podia relá em mim não..num entrava mais em ônibus porque o motorista mi conhecia i nu mi queria… briga por causa de muiê, em baile, aqui..aqui na esquina desta rua memo, aqui na frente, tinha um bar bom pra dançar e namorar e bom pra puxa briga (sorri) uma vez entrô polícia por causa das briga e nós fugimo pelo fundo, e tivemu tempo de entrar no fusca da polícia, tirá os banco e corre cum eles até ali a fonte de àgua, a gente ia levá pra casa os banco mais nun guentemo corre cum eles (ri).

Mas o pessoal do baile sabia quem nóis era e os policial perguntaram tudo, tudinho aí um dia pegaram nóis, botaram num caminhão aberto com polícia e cum o padre. É, cum o padre… o padre Lázaro que pra vocês é nome de praça mas que eu cunheci…e aí o caminhão ficou dando volta com nóis tudo e o padre ficava falano “Esses indivíduo é seus vizinhos, mas não merecem confiança, cuidado com eles” “cuidado com eles” “cuidado com eles” eu mi lembro até hoje como ele falou, eu não achava que as pessoa tinham que não confiar em mim, eu não pensava nisso, eu num pensava que meus vizinhos podia ter medo de mim, eu achava que eu mi defendia, que eu tava no direito de me defendê..

Aí num prendero a gente, acho que só pudiam prendê, comu fala, em fragrante…bom, soltaram nóis em casa, mas aí as pessoa num falava mais cum nóis, na venda, eu num conseguia comprá nada, ni eu nem meus companheiro, num conseguia arranjá trabalho. Nóis só tinha amigo no bar. Mas eu me afastei do bar, porque percebi que ali só me dava problema, arranjei trabalho em fábrica, longe, do bairro, passô meses, eu num pisava mais no bar, num arranjava mais briga, mais as pessoas continuava fazeno qui nu mi via. Aí eu fui até a casa do padre pedí pra ele falá pras pessoa que eu tava melhor, que  agora eu era home bom, trabalhador. E ele falou, e os vizinho e o dono da venda voltarum a falá comigo.

Pega o mininu, coloca pros colega pra falá o que ele faiz de errado, os amigu vão ignorar ele daí ele percebe. Percebe e muda. Mas tirá da escola num faiz milhorá não.

Coordenadora (em cima da fala do senhor e meio baixo) – Não é viável isso…

Diretora (cortante) – Muito importante a colocação do senhor. Podemos dar início à votação.

Professora de matemática – Sou a favor de que o João vá para outra escola, acredito que tem que perder para dar valor..

Professor de geografia – Eu acho que o João não se encaixa nas regras dessa escola, talvez em uma escola com menos regra…

Professora de ciências – Já demos todas as chances, outra escola é melhor.

Professora de inglês –  É já esgotamos nossas forças…

Diretora – Seu voto, professora.

Professor de inglês (sobressaltada pela chamada que tomou) – Pela expulsão.

Coordenadora (contemporizando) – Lembrando que expulsão não existe, é um convite para o aluno buscar uma escola que se adapte mais.

Professora de português Acho que com o susto ele se endireita, aqui já esgotamos os recursos. Sou a favor.

Professora de história – Eu tenho dúvidas, voto por mais uma chance.

Mãe aleatória (que estava ali só para dar um caráter de conselho de escola representativo dos pais também) – Olha, eu só conheci o aluno hoje, o que sei foi de ouvir falar, e são coisas sérias, o meu filho não é da classe do João Vitor mas sempre conta das brigas, eu acho complicado ter um aluno que é violento,  e ele  agora nem pede desculpas…eu sou a favor.

Professora de educação física – A favor.

Professor de artes – Eu voto contra.

Diretora – Então foi decidido por maioria, o João Vitor nem precisava vir amanhã. Nós vamos pesquisar  vaga nas escolas próximas e a coordenadora vai entrar em contato com o senhor para avisar em qual fazer a matrícula do João.

Nocauteados e anestesiados pelo soco, o senhor e o menino saem do ringue. Agora o bisavô segura o bisneto pela mão, que chora. Não sabe o que falar. Já na rua, olha para a padaria que está no lugar do bar de tantas confusões passadas, onde tantas vezes, quando jovem, e com muito mais idade que o bisneto, também arranjou brigas. E sente saudades do tempo em que havia mais segundas chances, mesmo que os delitos fossem mais graves.

  

( Observações:

1 – Esta é uma obra de ficção. Eu fui professora e participei de vários conselhos de escola com o mesmo objetivo, mas nunca lecionei na E.E. Dr. Baeta Neves. Esta escola foi escolhida porque realmente está, hoje, na mesma rua em que ficava o bar “risca faca”, que era a fama do bar e não nome. Aliás “risca faca” era a fama do bairro do Baeta Neves durante as décadas de 1940 e 1950. O relato do senhor José Aparecido, inclusive o do roubo dos estofados do carro de polícia e o da iniciativa do padre é, por incrível que pareça, fato histórico.

2 – Meu lado linguista me puxa as orelhas por representar a fala do senhor José Aparecido com “fazeno”, “falá”, “mininu”, prendê, “cum” etc. Pois sei que falantes altamente escolarizados e que são de regiões centrais do país também “comem o ‘r’ e o ‘s’ finais de palavras, e paulistanos também falam “mininu”. Então porque fiz assim? Me parece que a escrita assim, em dramaturgia, vira um código para o ator. Como o resultado final é a atuação, o texto é um recurso e não precisa ser sempre levado ao pé da letra, é um indício de quem é a personagem. Na momentos do ensaio, atores, atrizes e diretor(a) trazem sua visões e interpretações e fazem um todo que supera o texto.

Na prática, é responsabilidade do ator e da atriz trabalhar as nuances de fala popularmente conhecidas como sotaque. Em uma palestra na Cia do Nó, Santo André, com o grande Luis Alberto de Abreu, em 2016, peguei carona na pergunta de uma colega preocupada em como representar a fala do morador de certa cidade do interior de São Paulo na sua dramaturgia. Abreu foi categórico “Você não precisa se preocupar com isso.” Abreu confirmou uma impressão que eu já tinha: o dramaturgo se preocupa com vocabulário regional, representações fonológicas e fonéticas não são com a gente.

Eu fico muito triste quando pergunto e ainda insisto na pergunta e me respondem “Você não precisa se preocupar com isso”, porque se eu estou perguntando é porque eu acho muito importante eu me preocupar, e quero muito me preocupar, muito da minha identidade está nesta preocupação. E pior, a pessoa que responde acha mesmo que está sendo acolhedora, o Abreu foi super fofo, mas eu fiquei com dois problemas: eu não sei como representar a fala do interiorano de uma forma não estereotipada e eu não sei onde/de quem obter esta resposta.

Na verdade o “onde” eu tenho. Quase me tornei sociolinguista, anos de participação em grupo de estudo na faculdade serviram, pelo menos, para me informar da ampla gama de 20 anos de estudos na área. Eu me lembro, por exemplo, de um estudo do pessoal de João Pessoa que registrava as diferenças do alçamento da vogal pré-tônica em várias capitais do nordeste. O que é este palavrão “alçamento da vogal pré-tônica” ? O “é” de “mé-ni-no”, por exemplo. Os nordestinos que abrem bem a boca para falar as vogais “é”, e “ó” não o fazem da mesma forma e em todas as palavras. Há palavras que os baianos falam  “e” e não ““é”, quando paraibanos fazem o contrário. Mas na representação padrão “Globo” de sotaque, que acaba sendo sempre reproduzida, é só colocar uma personagem falando “mé-ni-no” que pronto, esta personagem pode ser de qualquer lugar do nordeste brasileiro, como se baianos, alagoanos, pernambucanos,  cearenses, paraibanos etc não tivessem diferença de fala entre si. E pior, como se não houvesse diferenças de fala entre o baiano, alagoano, pernambucano, cearense etc  da capital e do interior do estado, da classe alta e da classe baixa, jovem ou idoso etc

Mas, você, que por algum grande esforço de paciência chegou até aqui na leitura, pensa “A arte não tem uma obrigação de representar o real, é imitação do real”. Sim, é fato. E a representação da fala de nordestinos, caipiras etc já está de tal forma estabilizada que vira baliza para o ator e atriz comporem suas personagens, o público também já está acostumado. O público também sabe que é de brincadeira, “as coisas não são assim na verdade”.

O problema é que estas “balizas representativas” de tão reiteradas a longo de anos se tornam ideologia. Se estamos no momento de questionar como a mulher, o negro, o homossexual, o transsexual são representados na literatura, teatro e cinema, será que este também não é o momento de rever como moradores e moradoras de regiões que não são grandes metrópoles ou que não estão no eixo Rio-SP são representados? Imagine uma personagem que fale coisas como “ocê”, “cademaria” (para se referir a “casa de Maria”), “porrrta” com o erre bem puxado. Agora pense, você consegue imaginar esta personagem como uma pessoa muito séria, numa profissão rígida, um juiz por exemplo? Você consegue imaginar uma personagem que fale desta forma sendo representada num filme que retrate um grande drama psicológico?Preconceito linguístico está aí, existe.

Como a pesquisa linguística entraria nisso? Penso. Na verdade, por enquanto, só sonho, em pegar as pesquisas sociolinguísticas, pinçar de lá as palavras-exemplo de um certo uso fonológico, trazer para o texto teatral e ir preenchendo com vocabulário e, claro, com as intenções de fala e ações das personagens. É criar uma dramaturgia fazendo o caminho contrário da pesquisa sociolinguística. Os linguistas gravam falas de pessoas, transcrevem, compõem seu dados e publicam a pesquisa. Eu usaria dados da pesquisa para compor falas e depois buscar com  ator/atriz como enunciar estas falas.

Mas, para isso, eu preciso de um grupo teatral que topasse o desafio e para topar o desafio o mesmo grupo teria que se apropriar da necessidade disso tudo. Antes até de estar em um grupo teatral, eu teria que ter personagens que trazem diferenças regionais, o que eu não tenho. Esta cena foi a única em que eu trouxe esta questão, e o projeto que a provocou está parado pelo motivo acima descrito. Por esta e por outras razões, a fala do senhor José Aparecido foi escrita do jeito que está acima, da mesma forma que outros autores e autoras fazem, sempre fizeram e continuam fazendo. )

A FOTO

( Cena escrita em novembro de 2016 no Núcleo de Dramaturgia do CLAC  – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, dentro da proposta da dramaturga e professora Solange Dias de compor uma dramaturgia coletiva que tratasse da história da cidade. O projeto previa a montagem da peça, como continuação dos trabalhos, no 1º semestre de 2017. Porém, a nova gestão municipal não efetuou o contrato com professores do CLAC e hoje, o Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo não existe. Este e outros projetos se perderam.)

 

PERSONAGENS:

NARRADOR

PAI (ANTÔNIO)

MÃE (TEREZA)

MENINO (JUNIOR)

FILHA MAIS VELHA (ROSA)

FILHA DO MEIO (MARTA)

CACHORRO (DICK)

HOMEM 1

HOMEM 2

 

(Narrador) Uma Kombi, cheia de pessoas unidas por laços de sangue, sobe o recém-inaugurado viaduto do km 23 da via Anchieta e pára no meio dele. (O pai desliga o carro)

 

(Pai)

– Vamos todos tirar uma foto aqui.

( A mãe, surpresa)

– Podemos  parar aqui?

(Pai)

– Ora, mulher, não tem trânsito nenhum…

(O menino estranha)

– A gente não ia para a praia?

(Pai, resoluto)

– Vamos tirar foto!

(Toda a família desce do automóvel, o cachorro fica. Enquanto o pai ajusta o tripé e a caixa o menino corre, a mãe grita)

– Não atravesse a rua, filho, Pelamordedeus não corra pro outro lado!

(As duas moças combinam.)

(Marta)

– Vamos contar os carros que passam lá embaixo?

(Rosa)

– Vamos! Eu conto os fuscas e você conta as kombis.

( Narrador)  Marta sabe que vai perder esse jogo porque tem muito mais fusca que Kombi, mas ela não liga. Aliás, a rodovia parece um tapete com estampa de fuscas coloridos.

(Puxando o menino pela mão, a mãe lamenta)

– Eu nem estou com roupa pra foto, estou de calça…

(Pai, sem parar de ajustar todas as partes da máquina fotográfica)

– Por que você não fez como suas filhas que se vestiram de saia como uma mulher deve se vestir?

(Mãe)

– Elas estão na idade de namorar e se preocupar com isso…

 

(Narrador) Teve vontade de continuar a frase…

 

(mãe – voltada para o público) “Com três filhos – o Jr que só sabe aprontar  – e para acompanhar o que você inventa só me vestindo de jeito prático.”

 

(Narrador) Mas teve medo da bofetada. Se ela tivesse só o serviço de casa para fazer e olhar as crianças, mas era um tal de…

 

(Mãe – voltada para o público) “Tereza, me traz isso. Tereza me traz aquilo”

 

(Narrador)  Muitas vezes também tinha que carregar os galões de tinta, as ferramentas…

 

(Mãe – voltada para o público)  “Vê se dava para usar saia?”

 

(Narrador) As mulheres que tinham marido trabalhando fora é que tinham sossego. Marido no quintal de casa é trabalho dobrado. Tinha saudades de quando ele trabalhava em fábrica, com horário para chegar e, principalmente,  horário para sair. De manhã, com as crianças na escola, ela podia fazer as coisas do jeito dela, no ritmo dela. Varrer os quartos com calma, planejar ela mesma o almoço. Sair para mercearia e o açougue com tempo para conversar com as vizinhas.

 

(Mãe – voltada para o público) “ Com o homem em casa isso acabou, ele acha ruim que eu demoro e acha ruim o que eu compro, se eu trago frango cisma que quer carne e eu tenho que voltar na açougue e apressar o almoço, pois o homem também quer comer meio-dia em ponto. Meio dia e dez já está bufando… E o frango nem fica pro outro dia, porque ele também não quer frango no dia seguinte, quer (irônica) peixe ao forno. Tive que dar o frango pra vizinha e ainda ouvir do desperdício de dinheiro!”

 

(Narrador) Não faltava dinheiro quando ele trabalhava em fábrica e ela decidia o almoço.

(A mãe assente com a cabeça a fala do narrador, pausa, olha para a montadora de carros ao fundo e, ainda na ponta do palco,  fala mais para si mesma que para o público) “AVolks está chamando gente, bem que o marido podia se animar…”

(mãe – voltando para a cena – fala para o pai/marido)

– Ouvi dizer que a Volks está contratando, pagam bem…

(O marido a ignora)

– Pronto, fiquem ali. (aponta)

(A família posiciona-se, um ao lado do outro. O menino escapa…)

(O menino, olhando sem parar para os lados, fala, voltado para o público)

“Onde será que está a praia? Não vi daquele lado, será que é descendo ali?”

 

(Todos colocam-se do lado oposto de onde a Kombi foi estacionada, na frente do anteparo do viaduto.

A mãe tem que trazer o menino pela mão.  Ouve-se som de metal sendo arranhado)

(O cão chora dentro do carro. Voz em off, ganindo) “Quero sair, quero sair! Está quente aqui dentro. Quero sair! Cadê todo mundo! Quero sair! Cadê a Ma? Quero o colo da Má! Quero sair!”

 

(A pai fotógrafo analisa)

– Aí não está bom, não dá para ver os carros passando na rodovia.

(A mulher, psiquicamente cansada)

– Mas, homem de Deus, para quê ver os carros?

(Pai contrariado, levemente irritado.)

– Ora, por que é uma foto para mostrar o progresso. Nós temos uma foto do viaduto em construção, agora teremos a foto dele pronto com os benefícios que trouxe. (voltado para o público, sem sair do lugar) “Mulher que não entende nada. Só vê o que está na frente. Não se vê parte da História. Não ambiciona…”

(Mãe) – Antônio, se você quer a foto do viaduto, por que nós precisamos estar nela?

(Pai) – Ora, mulher, não me aporrinhe!

 

(O pai vem para ponta do palco e se volta para o público) “Mulher que não entende nada de fotografia e nem fica quieta para aprender. Tira-se a foto com as pessoas para provar que se esteve no lugar. Fotógrafo e modelos como parte de um todo, todos elementos da foto. Mas que importância ela dá pra arte da coisa? Nenhuma! Com a mania de limpar, quase manda embora os rolos fotográficos, segundo ela ‘ essa tralha’. Quase manda pelo ralo o revelador, em vez de deixar a bandeja quieta, porque achou que era água suja. Tenho que trancar a porta do quarto escuro para ela não inventar de abrir quando estou no meio de uma revelação.  Depois reclama que ficou esperando para falar comigo, e é cada coisa estúpida! Que me importa se ela vai fazer uma sopa com a carne que sobrou do almoço? Que faça! Desde que seja comível. Parece que não sabe tomar nenhuma decisão sozinha…”

(O pai dá um passo para trás e volta para a cena)

– Vamos, fiquem mais para a direita.

(Todos se deslocam um pouco. Pai repete a ordem)

– Ainda não está bom, mais para a direita!

(Mãe, impaciente)

– Mas tem uma pessoa ali, por que nós não vamos mais para a esquerda?

(Pai, irritado)

– Ah, Tereza, pare de retrucar! Vou te dar uns tabefes.

(Marta, a filha que sempre tenta apaziguar os ânimos, intervém)

– Tem uma pessoa à esquerda também, mamãe.

 

(Marta vem um passo para frente e fala voltada para o público) “Vamos tirar essa foto logo e ir embora…a mãe não sabe que não adianta teimar com o pai. É fazer o que ele fala e assim temos paz.”

 

(Narrador) A moça não entendia a mãe sempre retrucando e a irmã namoradeira, que apanhava porque namorava.

 

(Marta – voltada para o público) “Se o pai proibiu de namorar até os 18 não namore. Mas não, a mana saía escondido. E quando o pai descobriu, imagine! Se a mãe apanha só de questionar…se o Junior apanha porque bebeu coca-cola da geladeira, a coca-cola que está ali só para a cuba libre…se eu apanho porque derrubei o quadro da bicicleta recém-pintada, imagine a Rosa quando chegou de madrugada e encontrou o pai esperando por ela no escuro. Apanhou,  de cinta, ela , a mãe por não vigiar, eu porque provavelmente sabia…seria bom ter um dia em paz em família, para variar, o pai querer tirar foto, tire!!!”

 

( O pai, nervoso, mas argumenta)

– É, é. Tem um homem de cada lado, Tereza, já que você se incomoda com estranhos. (Volta a olhar pelo vidro traseiro da speed graphic e fala, mais para si mesmo) “A Volkswagen tem que sair na foto…” (levanta a cabeça da câmera e olha para a fábrica e rodovia à sua frente, sonhando alto) “… esta Volks que pariu este mar de carro que está ao lado dela. É isso, é a mãe com os filhos, e a rodovia e o viaduto é  este parque para os filhos. Esta cidade cresce e eu vou crescer com ela. Hoje tenho um negocinho no fundo de casa,  todos começam assim. Amanhã terei até filiais.”  (Volta a argumentar com a esposa) –  E à esquerda eu não enquadro a Volkswagen e o foco seria o lado da rodovia sem trânsito.

 

 

 

(O menino olha para o lado da rodovia  com quase nenhum carro, intrigado. Dá um passo para frente e fala voltado para o público, algo que é mais uma reflexão) “Mas lá não é a esquerda, é da mão que escreve, a direita.” (pequena pausa) Então é ali que está a praia? Pai falou que pra chegar na praia tem que sair da estrada à esquerda…” (menino dá um passo para trás voltando para a cena)

– Pai, a esquerda muda de lugar?

 

( Na espera pela decisão de onde ficar e na pouca importância que dão ao que o menino fala, por três minutos ninguém responde. Até que Marta se põe a explicar)

– O pai tá falando da esquerda dele, a esquerda da foto, não da sua, pra você é a direita mesmo…

(O pai se intromete)

– Marta, o menino sabe a diferença, você não tem que dar atenção à marra de moleque… Vamos, todos um pouco mais para a direita!

(O homem da esquerda  – da esquerda da futura foto- está de costas para todos, levemente encurvado sobre o parapeito, olhando para baixo, para a rodovia, de forma pensativa, fumando um cigarro, nem se deu conta da família da foto. Parou um pouco para descansar antes de retomar a caminhada a pé da volta para casa.  Pensa consigo) “Que canseira! Mas quando tiver trabalhando terei dinheiro para condução. Vai ser bom ter algum depois de tanto tempo. Ver se ter vindo pra cidade vale a pena. Se o cunhado tiver certo, não vou precisar tirar do ordenado o dinheiro da condução…ele disse que a empresa tem ônibus dela pra buscar os funcionários!  Tem graça até, na roça ônibus da empreita é o pau de arara. Mas se for isso mesmo, vixe, se for isso mesmo dá pra guardar muito dinheiro. Quem sabe, dá até pra comprar um desses fuscas até o fim do ano. Trabalhar na fábrica deve dar desconto pra comprar um, deve dar, deve dar sim.”

(O homem da direita, de camisa aberta no 1º e último botão e postura displicente, apoia-se com os dois antebraços sobre o guarda-corpo da via e diverte-se com a situação, que o distrai de pensar que “certa mulher” está atrasada.) “Que que esse povo tem com fábrica, com viaduto pra achar tudo tão bonito? Bonito é os meus cavalos no páreo. Bonita é o broto que está pra chegar….Bom era esse povo tirar essa foto logo,  vai que vão tirar foto de tudo mesmo e o broto aparece…não é boa ideia que ande por aí uma foto minha com ela..”

(O pai dá ordens)

– Marta e Rosa, fiquem à esquerda do homem. Tereza e Júnior ficam onde estão.

(O menino começa a descascar a tinta do ferro do parapeito. A mãe não se contém, de novo)

– Mas o homem vai aparecer na nossa foto?

(Pai) – Sim, (diverte-se) vai ter essa honra.

(O tal homem não se mexe porque pensa ser seu direito.)

(Atrapalhando o grande momento, o cão impacienta-se e começa a ganir mais alto, arranhando o porta-malas por dentro.) “Quero sair! Quero sair! Cadê a Má? Quero sair!”

 

(As filhas se condoem, falam em uníssono)

– Coitado do Dick!

(O pai, cada vez mais impaciente, ordena)

– Vocês duas, vão pegar o cachorro!

(Elas vão em direção a Kombi.)

 

(Narrador)  Rosa se diverte. Adora tudo que acontece que atrapalha os planos do pai e que ele não pode reprimir.

 

(Rosa, voltada para o público) “Ele não vai bater no cachorro!!” (ajuda a irmã a abrir a porta e acalmar o animal, a irmã tem o cachorro no colo, ela vem até a ponta do palco e continua falando voltada para o público) “O pai se acha muito esperto, muito inteligente, o que ele tem é força e manda na mãe que é tonta e não pode ir embora. Na verdade, o pai é ridículo. Ele pinta bicicletas no quintal de casa e se acha um grande industrial! A gente não tem mais dinheiro pra roupa, pra um doce, a coca-cola de casa é só dele. Não temos mais paz, tem que ajudar de domingo no serviço, com ele nos acordando às 7h NUM DOMINGO. Por que, na casa dele, ‘Quem não trabalha, não come’. Se o serviço sai errado, apanhamos. Aliás, apanhamos por tudo, até para respirar.  Mas teremos, claro, no futuro, grandes retornos para todos na grande empresa ‘Antônio e família’. O meu futuro eu já sei, o Pedro me adora, é um bom rapaz, trabalhador, já pulei muro de madrugada, entrei no quarto dele para ser mulher dele, aí a gente tinha que casar, que casar e fugir! Fugir! Mas ele não quis, tem hora que o Pedro é direito demais…” (volta para a cena e ajuda com o cão)

(Liberto, o animal lambe as meninas de felicidade!) “Oi Má, oi Rô! Obrigado! Obrigado! Obrigado! Obrigado!… …  É isto que é  praia?”

( Pai, não mais contendo a impaciência)

– Agora voltem todos para o lugar. Tereza, solta esse menino! Júnior se você correr você apanha! Rosa, Marta segurem o Dick direito!

 

(Narrador) E a foto foi tirada.

  E nós?

Dessa vez começou por causa de dois cruzeiros.

Dois cruzeiros era o preço de um saco de pipoca ou da passagem de ônibus.

As meninas sabiam disso porque sempre iam a pé da escola até a casa. O pai falava que se ele andava nove quilômetros para ir à escola quando era criança, as filhas dele bem que podiam andar dois. Mas até os pais durões por vezes se condoíam e este dava 2 cruzeiros para cada uma ir de ônibus em dias frios ou de chuva. Só que as meninas, acostumadas a andar, guardavam o dinheiro para comprar pipoca. Era essa a sua grande travessura.

No caso, os dois cruzeiros eram o troco do gás. A mãe pediu ao pai o dinheiro do gás. O caminhão do gás apareceu. Ela comprou o gás, mas, na hora de ter o troco de volta, o rapaz, naquele jeito malandro simpático não deu chance “Fica pra caixinha?”, era uma pergunta retórica. A mulher ficou sem ação, não quis ser rude. Ficaria por isso mesmo.

Não ficou.

Dinheiro geralmente é um problema, mas aquela família tinha um jeito próprio de agravar os seus. Uma vez, as meninas tiveram a tarefa de ir até o mercado municipal trazer mantimentos. O pai fez a conta de quanto seria cada item da lista, somou ao gasto da condução e deu o dinheiro certo para compras e frete. Deu também o endereço do mercado: Rua Padre Lustosa, travessa da Marechal Deodoro.

O primeiro problema foi achar a rua do mercado. As meninas, como dito, sabiam andar pelo centro da cidade, chegaram até a referência indicada e leram a placa: Rua Pe Lustosa.  Ingênuas, como as crianças de 8 e 9 anos ainda são (ou deveriam ser) e o eram ainda mais na década de 60, entenderam que estavam no local errado. Andaram um tempo pelas ruas ao redor. Nervosas, não podiam demorar, o pai também contava o tempo. Até que perguntaram. Um senhor informou qual era a rua, com o adendo da explicação sobre a abreviação da palavra padre.

O segundo problema foi pagar as compras. As verduras e legumes estavam mais caros, e no caixa, as irmãs perceberam que não haveria dinheiro para pagar tudo. Decidiram usar o valor da condução como complemento e voltar pra casa a pé.

Ao chegarem, encontraram o patriarca nervoso pela demora. Quase apanharam. Como defesa, elas contaram o ocorrido e a decisão. Ele riu, riu muito, riu alto. As chamou de tontas, pois era só diminuir a quantidade de tomates ou batatas que assim teriam dinheiro para o ônibus.

Talvez tenha sido o nervoso de, primeiramente se sentirem perdidas, ou talvez a ingenuidade da  idade não permitiu que elas tivessem o raciocínio descrito. Mas será? Será que elas ousariam não trazer todos os itens exatos da lista? E se não trouxessem, qual seria a consequência?

A mãe, por sua vez, não ousou. Apenas não exigiu o troco do gás e isso foi considerado grave erro.

O chefe de família vem almoçar e pede o troco do gás. A mulher explicou o que houve. Daí começou a discussão, os berros, a louça jogada ao chão, os constantes impropérios e acusações mútuas.

Não faz diferença se dessa vez a mãe apanhou ou não, ou se dessa vez as meninas conseguiram salvar algum prato, recolhendo a louça antes de terminada a refeição. Não faz diferença também se outro objeto foi ao ar, como daquela vez que a mãe amparou com o braço a máquina de escrever atirada em direção ao filho adolescente. Ou ainda, quando a neta testemunhou o buraco na madeira da mesa, prova de que era verdade o que tinha ouvido a avó contar: o avô tinha lançado a cadeira de ferro ao centro da cozinha.

O que fez a diferença dessa vez, foi que, depois que o marido saiu de volta ao trabalho, a mãe decidiu: “Vou largar o pai de vocês.”

“Vou largar teu pai, cansei dessa vida, vou embora.”

E repetindo essas palavras, ela foi, autômato, até o berço do caçula. Pegou o bebê que dormia e se dirigiu à porta sempre repetindo “Eu vou largar o pai de vocês.”

E saiu.

Deu-se algum tempo, mas não muito, até que a mais velha, assustada, raciocinou à irmã “E nós?”

E saiu correndo, a porta ainda aberta, atrás da mãe. A mais nova começou a correr também.

As menina avistaram a mãe já na subida da travessa principal.

Só os eucaliptos ouviam: “Mamãe, espere por nós”.

(Novembro de 2013)

(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)

Aprendizagens

Minha avó paterna sempre perguntava quando eu iria fazer o catecismo.

Na época, minha única relação com a Igreja era o som tênue dos sinos da Matriz que chegava à minha casa. Meu pai tinha sido católico praticante até casar. Minha mãe era espiritualizada, mas não tinha tido nem uma criação tradicional católica nem o desejo de desenvolvê-la.

A insistência da minha vó criou em mim uma segunda relação com a cristandade. Assim que chegávamos na casa da minha tia, com quem ela morava, assim que ela me via junto a minha mãe, questionava: “Essa menina já está fazendo o catecismo?”.

Parecia algo muito importante. Minha avó, cuja memória já se dissipava, que andava chamando as filhas pelos nomes das irmãs, que por vezes não se lembrava quem eu era ou quem meus primos eram, tinha, nessas visitas, rompantes de lucidez em que ela me reconhecia como filha do seu único filho homem, em idade apropriada para os primeiros estudos religiosos e cobrava a minha mãe: “Quando esta menina vai fazer o catecismo?”

Não me lembro como surgiu o assunto entre minha mãe e eu, acho que ela me perguntou, talvez meu pai tenha cobrado também. Mas sei que minha mãe deixou à minha escolha fazer o catecismo ou não. Eu quis. Tinha curiosidade. E dadas as constantes investidas da minha vó, parecia uma experiência  muito importante que eu estava deixando de viver.

Lembro que eu fiz questão de que a igreja fosse a Matriz, apesar da igreja do Baeta ser bem mais perto da minha casa. Queria a tradição, queria a principal da cidade. Queria a Igreja em que meus pais se casaram. Queria entender porque, apesar de ter o nome de Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, aquela não ser a paróquia original, de quando a cidade era ponto de parada para os viajantes que seguiam para São Paulo ou Santos. Pista de alguém já mais inclinada à história que à religião.

Minha mãe não se opôs. Quando ela e eu fomos fazer a matrícula, não havia mais vagas para aquele ano. Eu teria que esperar o próximo. Assim, comecei o curso com 11 anos. Era a mais velha da turma. Não sei se isso foi o que fez a diferença.

Debati muito com minhas catequistas. Pessoas boníssimas, mas que eu considerava estarem  me negando algo. Não entendi como Caim, após ter matado Abel, pôde ter povoado o mundo com seus filhos. Com que esposa, se além dele só Adão e Eva estavam no mundo? Entrava no carro e questionava a minha mãe, ela só dizia, num suspiro, para eu ter paciência e tirar as dúvidas com a catequista.

 

No ano seguinte, já no início da minha adolescência e com uma catequista mais rigorosa nos ensinamentos, o embate se agravou. Não entendia a Santíssima Trindade de jeito nenhum e gostaria que me explicasse, afinal, as professoras e minha mãe sempre me explicavam tudo e eu era aluna atenta e esperta.

Ela então começou a contar uma parábola para me explicar a Trindade. Eu me preparei muito feliz para ouvi-la. “Conta-se que Santo Agostinho estava andando na praia quando viu um menininho fazendo um buraco na areia, à beira do mar. O santo perguntou o que o menino estava fazendo e a criança respondeu que estava cavando um buraco em que coubesse toda a água do mar. Santo Agostinho riu, disse à criança que era impossível que toda a água do mar coubesse naquele buraquinho. A criança se transformou e se revelou como Jesus e ensinou a Agostinho que era mais fácil toda a água do mar entrar naquele vão do que o mistério da Santíssima Trindade entrar na cabeça dele ou de qualquer outro ser humano.”

Eu fiquei com muita raiva dessa história. História que não explica. História que serve pra dizer que você não é capaz de entender nada ( e eu que já tinha um quê renascentista). Eu não sabia que estava aprendendo na prática o que é dogma. Achava que era a professora que não queria explicar. E fiquei com raiva da catequista.

Mas chegava no domingo eu tinha dó dela. Na missa das crianças, do espaço reservado para as professoras de religião e seus alunos, via o marido da minha catequista cuspir no chão da Igreja. Via-o resmungar impropérios durante toda a celebração da Eucaristia. Via-o escarrar no solo que a esposa tanto respeitava. Eu não entendia.

Não entendia ela estar casada com ele. Não entendia porque ele estava ali, se não acreditava. Não entendia a hipocrisia. Mas fui aprendendo aos poucos.

Gostei muito de outras aprendizagens. A mais produtiva foi uma visita à igreja, com todas as suas imagens e objetos sendo explicadas. Entendi que as pinturas nas paredes representavam as etapas da paixão de Cristo. Aprendi o “outro” significado de paixão. Mostraram onde ficava a hóstia antes da consagração e o nome que ela tem, porque só é hóstia quando é corpo de Cristo. Explicaram cada parte do altar. Mostraram as roupas do padre e as diferentes ocasiões de uso destas. Mostraram os confessionários antigos. Vimos o sino!

Explicaram que não era necessário beijar o dedo, após fazer o sinal da cruz. Mas eu continuava beijando, pois tinha sido assim que minha avó tinha me ensinado. Mesmo que minha vó não soubesse disso, pois já não entendia mais do mundo bem antes de quando, finalmente, comunguei a primeira vez.

Uma vez, acho que era o mês de Maria, a catequista pediu que nós fizéssemos um texto sobre a Virgem. Eu já tinha começado a enveredar pelo caminho da poesia e decidi fazer um poema.

Naqueles versos coloquei tudo que tinha entendido que era considerado importante: a resignação de Maria à sua missão, a importância da chegada do filho de Deus, o nosso reconhecimento e a nossa submissão à grandiosidade da Virgem. E fiz umas rimas, umas metáforas interessantes. Gostei muito de fazê-lo.

A catequista adorou, leu para a classe, mostrou a uma colega. E eu, ficando sem graça…

Fiquei sem jeito pois  não sabia lidar com aquele novo aprendizado.

Além de aprender a achar trechos na Bíblia, a via sacra, os sacramentos, a salve-rainha, a rezar o terço, as músicas. E além de aprender dogma e hipocrisia, eu estava aprendendo o cinismo.

O poema fez tanto sucesso que eu fui escolhida como oradora, no dia da primeira comunhão. E deveria ler o meu poema! Mas eu continuava incomodava.

Era o primeiro evento importante em que eu falaria em público. E, pela primeira vez, (antes sempre tímida), eu me sentia preparada. Queria aquilo, mas me sentia culpada.

Li bem, fui elogiada.

Foi a primeira vez em que eu fui cínica.

Aquele texto lido com tanto orgulho no púlpito da Igreja Matriz, aquele poema à Virgem declamado no dia da minha primeira comunhão, toda minha oratória, era pura devoção, era mesmo, pura devoção…

Pura devoção à poesia.

(Novembro 2013)

(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)

Anjinho

Era uma tarde tranquila, um dia tranquilo, um dia comum.

Era o 10º andar do Condomínio Tiradentes, na avenida de mesmo nome.

Era uma mãe e uma criança em casa, em um simples final de tarde.

Uma tarde de muito calor.

Um anjinho: bebê dormindo no berço, ao lado da janela.

A mãe via televisão. Um começo de noite calmo, normal, rotineiro.

Rotina de dia de verão, todas as janelas do apartamento abertas. O calor era constante e intenso.

Ao fim da novela das seis, a mãe vai ao quarto da criança. Não está no berço. Onde estaria?

Como fora possível não ouvir o choro impaciente de quem acorda e quer atenção? Ou não ouvir as felizes exclamações de quem se aventurava em escapar do espaço que lhe é reservado? Como foi possível não ouvir os ruídos dos passinhos hesitantes que se aventuram pelo ambiente?

A mãe passa a procurar por todos os cômodos do apartamento. Primeiro, com nervosismo ainda controlado, a falta de ruído indicava mais grande apronto que grande problema.

Busca primeiro no próprio quarto infantil os locais já usados de esconderijo. O baú de brinquedos, o armário. Lembrando-se das vezes em que já encontrou o anjinho escondido pela tampa recurvada, no meio de bichinhos de pelúcia, as perninhas apoiadas em bloquinhos de montar, ou ainda, fechado atrás da porta entreaberta do outro móvel, fazendo de almofadas o estoque de fraldas.

A janela aberta, encostada no berço. Baú vazio de criança. As fraldas do armário nada escondiam. A janela aberta.

A mãe então foi ao quarto de casal, ao lado. Recordando outras travessuras. A criaturinha mal sabia andar, mal sabia pronunciar as primeiras palavras, mas já sabia ultrapassar barreiras, se espreitar por entre as roupas penduradas, alguns sapatos servindo de assento, outros, como luvas, a curiosas mãozinhas enquanto o nariz se divertia com o contato suave no pano das peças tão sufocadamente arrumadas em cabideiro tão pequeno. Ah o cabideiro! quase veio abaixo uma vez quando as mãozinhas desejaram conhecer o detalhe brilhante de um vestido.

Mas, dessa vez, as roupas estavam intocadas, o closet não havia sido violado.

A janela aberta.

Lembrou-se do banheiro. Na última ocasião em que houve grande silêncio, quando descobriu que o chiqueirinho não é um espaço inviolável para os menores, encontrou o projeto de gente divertindo-se em picotar tufos de papel higiênico e jogá-los na privada. Grande apronto. Para a mãe, claro, mães só enxergam a economia doméstica e não o infantil experimento científico.

Nada, nada mesmo. O banheiro estava impecável, como o tinha deixado após limpeza do dia.

A janela, aberta.

Começou a andar a esmo pelo apartamento, a olhar nos locais mais improváveis. Atrás do cômodo da TV nem há como entrar, mas olhou lá mesmo assim.

A janela? Aberta…

Foi até a cozinha. O armário embaixo da pia também era local de preferência da travessa criança, que se divertia com as panelas. Mas ela não teria ouvido o barulho do alumínio feito de tambor e das tampas rodopiando no piso? Sim, teria, mas foi conferir  assim mesmo.

Voltou ao quarto de bebê, procurou de novo no baú e no armário. Olhou de novo o berço, fechou a janela. A chuva repentina já havia molhado bem o travesseirinho e o lençol.

De novo foi ao seu quarto, lembrando da vez que o anjinho se esgueirou por debaixo da cama e lá adormeceu, como bebê urso que hiberna na sua caverna. Foi um dia inclusive que causou grande susto, como hoje.

Mas não havia ninguém embaixo da cama.

A janela?

Deu mais duas voltas pelo apartamento. Sufocada, voltou a abrir as janelas. Até a do quarto de bebê, a chuva de verão já havia passado.

Em nenhum momento lhe ocorreu olhar pela janela.

Toca o interfone, o porteiro avisando da ida dos bombeiros ao apartamento. Não tinha tempo para atender ninguém, o que afinal iam querer os bombeiros? Nova inspeção do gás encanado do prédio? A essa hora? Não tinha tempo nem cabeça para atender ninguém. Afinal, ainda não havia encontrado sua criança e estava começando a ficar nervosa, muito nervosa.

O bombeiro vinha comunicar sobre o corpo.

O anjinho.

(Novembro 2013)

(Um dos 5 textos do conjunto ganhador do quarto lugar -crônicas – do concurso literário de São Bernardo do Campo – 2013)

 

 

Sina?

O pai sempre lhe cobrava um neto. Era imaginativo, sempre arranjava meio de dizer a mesma mensagem com roupagem diferente:

– Você fica aí desperdiçando vida.

O rapaz levanta pouco os olhos do livro, com nenhuma vontade de iniciar conversa:

– Do jeito que o senhor fala, até parece que eu não faço nada dos meus dias.

O mais velho não perde o fio:

– Você tinha é que cuidar de criar uma família. Arranjar moça com dom de boa mãe. Quero uma casa cheia de netos…

O filho nada respondeu, entretido em ideias escritas. Mas o pai continua:

– Vinte e três anos… na sua idade eu já era pai seu, de Tônia e de Juninho.

O rapaz deixa o livro descansar da conversa. Sem brigas de atenção.

– Juninho não tinha nascido

– Mas já estava em barriga…

– Vá cobrar de Tônia.

– Não preciso, Tônia já está casada, o andamento natural é logo, logo vir frutos.

– Não desperdiçar vida é fazer dela o que se tem gosto, não vou me forçar a casar com urgência só porque o senhor manda.

E volta a ler, dando a conversa por terminada. O pai se impacienta com tão pouca atenção:

– Da nossa família, o tempo é inimigo e disso você bem sabe. Como pode se pôr aí tão tranquilo?

O mais velho se referia ao acontecimento de constantes mortes prematuras nos homens  daquela linhagem, por conta de coração que resolvia se aposentar cedo. O pai do pai havia morrido com 42 anos, o avó do pai, com 44, o bisavó do pai, com 40.

O rapaz nada responde, os olhos pousados em parágrafos. Seu pai se coloca em frente dele, em alto volume e gesticulando:

– Você fica aí só cheio de livros.

Quem se impacienta é o jovem:

– Estudando, né, pai?

– Foi o que eu disse.

Lembrou ao pai que o estudo encurta os degraus do caminho da melhoria de vida. Mas o homem vivido não se deixou vencer:

– Não ocupe muitas horas em melhoras de resultado que você pouco vai desfrutar…

O mais velho sabia da demora que há para o estudo se converter em “melhorias” e arremata:

– … filho traz melhoras rápidas, melhoras de alegria.

Faz-se grande silêncio. Muda então o tom imperativo para um mais conselheiro:

–  …filho, não espere que seu caprichoso coração dê mostras de greve, como o meu, para se preocupar com o andamento da vida.

O pai já havia se desmanchado um pouco, em paradas.

Mas acontece que ao coração do rapaz se somavam outros caprichos, nenhuma moça lhe despertava o amor. Já havia, é claro, investido em namoros, mas nenhum de retorno a longo prazo. Preocupava-se com a vida, e muito. Muito aprendia, pois queria estudar no estrangeiro, ver outras paisagens, outras vidas.

Sobre tais planos, o pai era taxativo:

– Muito planejamento é desperdícios.

– Tão curta vida e o senhor gasta a sua discutindo comigo…

– Ora, estou de acordo com minhas ideias, gasto tempo com filhos, mesmo que em desentendimentos.

-…..

– Coração que faz greve, sem direito a negociação. Fato é que ninguém da nossa família até hoje ganhou das teimosias caprichosas do coração.

O moleque desafiou: não seria melhor não colocar criança no mundo, fadada a tão curto destino?

– Arre…não dá pra conversar contigo.

Não que não se imaginasse casado e com filhos. Porém, não estava interessado em que prematuros planos de descendência viessem bagunçar a organização da sua existência.

Chegou a se formar engenheiro, a morar no estrangeiro.

E o pai, sempre decepcionado: desperdícios.

Ao voltar, se fez em bom emprego do qual gostava.

Conviveu em outros namoros, mas ninguém ainda habitara seu coração.

Brincava com os sobrinhos, emprestava dinheiro aos irmãos, visitava a mãe, ralhava com o pai. Até que o coração deste se aposentou de vez, após 47 anos de pulsações constantes.

O moço, na juventude, achava corriqueiro o amor não ter sido ainda achado. Mas aos 30 anos, doía-lhe o peito e a existência essa ideia de falta, embora, claro, nunca o tenha admitido ao pai.

Aos 35 ele se sente mal jogando futebol com os amigos. Palpitações, desmaia.

Assina assim a sua sina?

Socorrido, descobre o nome e sobrenome da doença. Enfermidade conhecida há mais de um século, ao alcance de qualquer manual médico. Aprende que remédios tomar, como se alimentar, quais exercícios, ou não, fazer.

E continuou vivendo.

Vida normal. Intercalada de visitas mensais ao cardiologista.

Em uma dessas, encontrou moça também de coração aos cuidados.

A união se deu quando ele tinha 42 anos, sua filha nasceu três anos depois.

Fez questão de levar a bebê para ser conhecida pelo avô.

Para a lápide, sentenciou:

–  A minha menina está aqui…o senhor é que não se cuidou.

(Março de 2015)