A cobrança da poesia

E a peça não teve bailarinas.

Muito menos uma bailarina hipopótama.

E a peça não teve corcéis negros que pulam de terraço a outro de prédios no centro velho de São Paulo.

O país não me deixou falar do sonho.

2016 teve o maior número de homicídios da história do país:  7 pessoas foram assassinadas por hora no Brasil.

Não tem sonho quando tem 7 assassinatos por hora (sem contar os  5 estupros por hora).

E minha peça não teve sonho.

Teve Creonte denunciado por corrupção.

Teve Antígona lutando por uma lápide digna ao irmão, procurando o corpo do irmão ocultado.

Uma Antígona que cava, cava, cava buscando, buscando e quanto mais cava, mais  faz valas que são usadas para abrigar os corpos das crianças da Maré ou da Rocinha ou da creche em Minas Gerais ou dos estudantes de Goiás.

Uma Antígona que não descobre o irmão embaixo da terra, mas que cobre com terra os corpos dos trabalhadores rurais do Pará, dos quilombolas da Bahia , os índios da Amazônia e moradores de rua de São Paulo.

E esta minha peça teve a leitura potente e linda de sete colegas que receberam o texto na hora, um texto terminado na véspera. Um texto que tinha certeza de que não seria terminado.

Terminada a dramática leitura , as colocações dos colegas  foram:

“Eu sinto falta de quando você escrevia de forma mais poética.”

“Eu me lembro do seu texto da bailarina.”

“E tinha também aquele texto dos cavalos.”

E eu, em choque, o que fazer se não quero e não consigo falar do sonho?

Foi só bem mais tarde que degustei as apreciações.

“Puxa, vocês queriam a bailarina? Eu posso dar ela sim.”

Não sabia que vocês queriam.

Desculpe não ter conseguido trazer ela agora.

E é assim que se resuscita uma personagem que eu já matei 4 vezes. E que, ironicamente, é o motivo de eu ter ido estudar dramaturgia: a bailarina que passa os dias processando notas ficais.

E  foi assim que, pela quinta vez,  essa bailarina de tule puído e sapatilha desgastada sai da sombra onde  eu a escondi, invade a minha visão periférica até se colocar bem na minha frente, sambando na minha cara (afinal, eu não a coloquei para treinar o balé clássico então ela vem sambando), ela vem majestosa e petulante, apontando o dedo e rindo “Você não vai se livrar de mim!”

E me pareceu estúpido não ter escrito ela, me pareceu triste não poder ter usado da escrita para dar algo a alguém agora.

Obrigada colegas da Escola Livre de Teatro de Santo André por terem me cobrado o sonho.

Ano que vem essa bailarina chega.

Qual técnica desnuda o apontar do olhar ?

 

Pão de Açúcar visto da Baía de Guanabara com escrito à mão "Nem isso, nem o nu"
Pão de Açúcar visto da Baía de Guanabara

 

Passeio de escuna no Rio de Janeiro, tiro a foto do Pão de Açúcar visto da Baía de Guanabara.

A foto fica ruim. Tenho uma certeza e uma dúvida. A certeza é de que preciso de uma máquina fotográfica decente,  o celular não satisfaz:  a câmera não mostra o que eu vejo.

A dúvida é: quem afinal vai se interessar por outra foto do Pão de Açúcar?

Mas já  me respondo, o interesse é motivado por ser outro o foco.

É o Pão de Açúcar visto do mar.

Arte: instrumento para que o que o artista vê  seja visto por outros.

Arte não é trazer o incomum, é mostrar o que é visto todo dia de outro modo.

Trazer um olhar que motiva olhares.

E de novo me lembro de Galeano[1] com sua história do menino que nunca tinha visto o mar:

E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente  conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

– Me ajuda a olhar!

A função da arte é ajudar a olhar.

Apontar o olhar para o comum, por outro foco, é retreinar o olhar.

Mas além de não ter arte na foto porque eu preciso de uma câmera e de curso de fotografia (sim, sou da turma que afirma que arte pede técnica), me pergunto  quantas pessoas,  nessa sociedade de pós-verdades, estão dispostas a retreinar o seu olhar?

Me parece que nem é interessante outra foto do Pão de Açúcar (mesmo que por mãos mais habilidosas) e nem é aceito o nu performático do museu.

 

[1]  Em O livro dos abraços

Mulheres e Letras

Eu já pensei em escrever um conto que se passasse em um país, ou uma espécie de mundo fantástico, uma república dos artistas.

Em parte baseada na ideia de que se Platão expulsou os poetas da sua República, para onde eles iriam?

Pensei em colocar no conto a contraposição entre uma nação que não tivesse nenhuma arte, só os ofícios que contribuem diretamente para o PIB e outra em que só morassem os artistas.  Como seriam as relações entre esses dois lugares?

E a Terra dos Artistas seria como a Terra do Lá  do Carrascoza[1] lugar de coisas perdidas, você perdeu o sonho, a sensibilidade, a magia? Só fazendo uma excursão para a Terra dos Artistas recupera-se.

Estar no Mulherio me fez lembrar desse embrião de narrativa. Estiveram em João Pessoa, neste feriado passado, para o Encontro do Mulherio das Letras cerca de 500 mulheres que escrevem. A maioria delas é desconhecida do grande público e todas buscam formas de divulgação do seu trabalho.

Arte é isso, um ofício marginal.

Claro que o objetivo do encontro foi debater sobre invisibilidade dos livros de autorAs no mercado editorial e de como furar essa barreira. Mas, de forma geral, ter um ofício relacionado à arte é sempre correr o risco de não exercê-lo.

Porque  a esmagadora maioria de escritoras e escritores, dramaturgas e dramaturgas, atrizes e atores, musicistas e músicos, bailarinas e bailarinos, pintoras e pintores, escultoras e escultores, desenhistas, chargistas, etc  têm que conciliar o trabalho artístico com um outro ofício, um que coloque o pão de cada dia na mesa.

E daí que o trabalho que traz pão tira energia e tempo do trabalho da arte. São vários os casos de eclipse total do primeiro sobre o segundo, quando a subsistência tira a vida.

Na minha Terra dos Artistas, seus moradores não teriam mansões com piscina ou carros do ano, mas todos teriam público. Porque há público para todos os artistas. Quem não gosta de um tipo de livro, gosta de outro. Quem não gosta de um filme, gosta de outro e, claro, a correspondência não é um pra um. O que gosta do livro de um também gosta do livro de outros.

As pessoas têm o direito de exercer o trabalho para o qual se preparam, mas o mercado da arte é o mais cruel por não abarcar os seus profissionais na totalidade.

Parece que precisa de prêmio para poder se dizer escritor.

Ninguém vai a um médico, por exemplo perguntando se o doutor ganhou prêmio na área. Para sabermos se o médico é competente, vamos atrás de indicações, da sua formação. Ora, o mesmo pode se dar com o artista, ouça a música da pessoa pra saber se compra o CD, leia o livro, para saber se é bom.

Mas como o público poderá comparar e avaliar se o CD ou livro não é comercializado nos lojas de Cds ou livrarias?

Poderia ser menos cruel, não é?

E lá, em João Pessoa, entre 500 mulheres, algumas premiadas, outras não. Umas premiadas agora, outras há 10 anos. Entre todas, a mesma angústia de como fazer seu trabalho conhecido.

E eu, a escritora sem livro, cheguei a me sentir quase sem direito de estar ali.

Entre tantas escritoras, porque mais uma?

Por que serei mais uma?

Ora (disse de mim, pra mim) porque tenho direito de exercer meu ofício.

E porque sei que, se preciso tanto escrever o que escrevo, com certeza há quem gostará de ler.

 

[1]  No livro Aprendiz de inventor

Quando eu vi e senti o porquê

Eu ia continuar com Galeano, mas fui no correio. E lá, a magia da vida real brecou minhas crises intelectualoides.

Entrava no blog no horário cronometrado a postagem anterior, a crônica que fala de sou escritora no correio e enquanto isso…

eu fui escritora no correio.

E dessa vez eu não fui escritora por  levar textos para concurso literário. Estava lá com aquele estranho envelope, fechado à cera de vela. Carta a alguém que não conheço. Alguém que não espera receber palavras minhas, mas  receberá.

E talvez ser escritora e escritor é isso:  delinear palavras intrusas, palavras que podem ser bem recebidas, apesar de não terem pedido licença em vir.

Eu fui escritora no correio por ter sido lida pelos funcionários do correio.

E ali, eu, com minha carta já postada, eu que já não era mais cliente, mas esperando que os demais com senha não soubessem disso porque paramos a fila. Do outro lado do balcão amarelo um Beto tímido que me diz que leu sim a crônica que eu entreguei em mãos da minha última vez lá.

Eu, também tímida, nessa visita de entrega de um texto sem meu nome. Menos pela vaidade de ser lida, mais por entender o direito de Beto saber que foi personagem.

E o Beto “Espera uma pouco vou chamar meu supervisor”, quando ele chega, me apresenta “É ela que é a Mariposa”.

E, naquele agora, naquele ali, Beto não era mais o funcionário público nem Ramon era seu chefe, eram amigos, eram pessoas que leem e comentam o que leem. E ficam satisfeitos de trazer suas apreciações a quem escreveu, eu, do outro lado do balcão desbotado. Eu, mariposa, a identidade secreta do pseudônimo revelado.

Naquele ali feito agora, valeu a pena ter escrito aquelas linhas lidas. Entendi Galeano no palpável do sorriso de trabalhadores, prestes a precisar pedir direitos numa greve, que despem o fardo do funcionalismo público para alegria de se colocarem. Na minha alegria de ter levado alegria, nós quatro  – a atendente do lado também ouvindo curiosa- nós quatro num raro momento de pausa qualitativa na rotina.

Experimentei ali as finalidades do meu ofício.

Feliz, não precisei retomar o debate com Galeano.

De quando sou escritora

Senha I1772.

Se for atendida pelo 6 é porque vou ganhar.

Se existe um lugar em que sou escritora esse lugar é o correio.

Há poucos lugares possíveis para ser escritor, por isso é muito difícil encontrar as pessoas que se dedicam à escrita no cotidiano da rua. O escritor não compra pão, a escritora não busca os filhos na escola.

Considero que a palavra escritor funciona como a palavra vestibulando. Foi uma bela crise de identidade quando descobri que só se é vestibulando no dia da prova, efetivamente prestando o vestibular. O ano inteiro enfiado em livros ou afiada em aulas do cursinho não qualifica, diz o dicionário,  o/a jovem como vestibulando(a). Da mesma forma, só se é escritor/escritora quando se está, de fato, escrevendo.

Outro momento em que o escritor ou escritora são efetivamente escritor e escritora é quando divulgam seu trabalho, o lançamento em noite de autógrafos, as mesas de debate em eventos literários. Mas quando não se lançou livro para autografar e muito menos para falar sobre, qual o primeiro lugar em que me divulguei? O correio.

Faz dois anos e foi sem querer. Eu não falo que escrevo. Ou não falava. Mas quando o atendente atencioso perguntou se eu também não queria reforçar o segundo envelope já que me preocupei tanto em blindar de rasgos o primeiro, expliquei. Não tem problema que este venha um pouco danificado, é pra mim mesma. Pra você mesma?  É. Você está mandando uma carta pra você mesma? Flagrada, bem sem graça, expliquei o que me explicaram em curso de direitos autorais. Como registro na Biblioteca Nacional sai caro, um envelope contendo os textos que o autor ou autora envia para si e mantém lacrado, com o carimbo do correio marcando a data, garante autoria em caso de contestação. É o mesmo que não ter crédito na praça e só possuir o nome a zelar sem mácula no Serasa. É o medo do iniciante, E se consideram que meu texto é excelente e outra pessoa diz que é dela, como eu provo? É ser amador e só ter duas coisas: a paixão à escrita e a autoria de alguns textos.

De qualquer forma, foi no correio, para o atendente astuto, que divulguei a minha obra e me nomeie escritora. O primeiro envelope? Ah, era para um concurso literário.

O terceiro momento em que também se é escritor e escritora é esse: a autonomeação. Argumento de base antropológica, se falo que sou escritora, eu sou e pronto. Continuei não me autonomeando nem me divulgando, mas meio indignada, resolvi fazer direito e registrar alguns textos meus.  Assim, também fui escritora na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Claro que não viajei até lá para isso, fui visitar amiga e planejei o sonho, meu registro de nascimento como escritora seria na sede. Chamei a amiga para ser madrinha de batismo, mas não julguei o lugar digno de um nascimento. Não era a Biblioteca Nacional com suas escadarias de mármore,  tapete vermelho e suas colunas de prédio histórico necessitando de restauro. Era um andar de prédio vulgar,  no mesmo quarteirão que a clássica, que parecia um cartório. Mas é um cartório, ponderou minha madrinha, é que o nascimento já foi. Gostei da explicação e me considerei nascida.

Quem nasce quer se movimentar, deixei de rolar sobre meu próprio berço, escrevinhadora de fim de semana e passei a engatinhar em rápidas oficinas literárias. Escrevi um péssimo microconto na Casa das Rosas, frustrada não percebi: fui escritora na Avenida Paulista! No Ateliê da Casa Mário de Andrade, pedi chão aos caquinhos vermelhos do piso de cerâmica, tão paulistanos quanto Mário e também tão clássicos quanto. E ganhei! nos ouvidos atentos à primeira sonoridade dos meus textos. Eu era escritora em voz alta e tinha um primeiro público!

Querendo novos estímulos, querendo andar, passei a levar caderno ou notebook a outros ambientes.  No Museu Anchieta, do Pateo do Collegio, as paredes de taipa de pilão me ensinaram antigas formas de sustentação.  Recarreguei as minhas baterias (já que as do notebook não dá) no espaço de leitura com lago artificial do Sesc Pompeia. No Centro Cultural São Paulo, atravessei coreografias para, nas cadeiras multicores que também abrigavam estudo e aulas, gestar uma antologia de manifestações literárias e políticas. E, por depósito interativo, um poema meu também queimou junto com todas as exposições, reflexões e flexões de língua que se achavam abrigadas no Museu da Língua Portuguesa.

Escrevo em pontos pela cidade. Ligando os pontos, sou uma escritora em São Paulo!

Senha I1772  Guichê 6. Olho pro painel, risinhos internos. Vou em direção. Sumiu na tela. Olho pro homem do guichê 6, Você chamou? A gente duvida até dá felicidade inventada. Sim, I1772.

Eu vou mandar esses normal. Carta comum? É. Enquanto você vê esses, me empresta o durex pra reforçar esse aqui? Aponto para o gordo envelope pardo. Deixa que eu faço isso. Ele olha duas vezes os envelopes e vê meu nome e endereço como destinatário em uma carta e como remetente em outra. Ele olha de novo. Esse envelope vai voltar pra você é isso? É. O mesmo sorriso sem graça. Eu já te expliquei isso. O mesmo atendente, por isso achei que traria sorte. Ah, já sei é algo que você escreveu. Nossa, você lembrou. Sim, eu tenho vários pacotes de mim pra mim fechados em casa.

Entregando o envelope pardo prenhe, apresento-o como o destinado a mais um concurso literário. O atendente atento, que chama-se Beto, enquanto protege os limites da correspondência com a fita adesiva do Sedex, me pergunta se eu ganhei aquele concurso de faz dois anos. Digo que não, mas me apresso a minimizar contando que ganhei outros, publicações em antologias e dois mil reais de 4º lugar crônica em um da nossa cidade. Olha só eu já me fazendo de importante para o meu público!

Por fim, indaga quanto tem de valor ali. Não sei. Como quantificar possibilidades? Quanto em real é o peso daquilo que se entende que realmente se é? Mas a pergunta era mais simples. Não tem mais de 50 reais aqui em papel, né?Assenti. Então o seguro é automático. Beto explicou que o correio ressarce  valores altos no caso de extravio. Me assustei.  Por favor, que o correio não perca o meu, se perder o conto não chega, e vai que eles iam achar que eu estou revolucionando a literatura, eu perco o prestígio e 50 mil reais! Já é tão difícil despachar o recheado envelope pardo, a vontade é de ficar agarrada a papéis que dizem que escrevo. Vias da minha voz.

Quando Beto colocou o Aviso de Recebimento preenchido em cima do remetente pardo fiz ISHI!!! O que você esqueceu? Não pode ter meu nome no remetente. Ele parou com o cartão no ar. É regra do concurso que não tenha nome no remetente, só o pseudônimo. Dá aí, eu risco o meu nome. Ah, não vai riscar o AR. Ele pegou a fitinha que sobra das margens do papel adesivo e cobriu minha real identidade. Eu, prática, Deixa sem nome. Ele, simpático, Coloca seu pseudônimo! Coloquei. O seu porteiro vai perguntar: Quem é Mariposa? Vai ser engraçado, pensei.

E lá se foi o meu pseudônimo no remetente do AR, vou ter que chegar em casa e explicar para o porteiro. É oficial. Muita gente já sabe. Eu escrevo.

Nem deuses nem insetos

Trecho de “A descoberta da América (que ainda não houve)” de Eduardo Galeano

Minha crise não se satisfez com Érico Veríssimo, fui buscar drogas mais pesadas. Reencontrei Galeano.

 Não compartilho a atitude dos escritores que se atribuem privilégios divinos não outorgados ao comum dos mortais, nem a atitude dos que batem no próprio peito e rasgam as próprias roupas pedindo o perdão público por viver a serviço de uma vocação inútil.

Esse texto é de 1976. Desconheço autores nacionais atuais que estejam pedindo perdão por serem escritores e assim, não mudarem a realidade. Isso é bom ou ruim?

Ou seja, os escritores de hoje interiorizaram qual é o papel de seu trabalho no mundo, ou estão vivendo de glórias nas suas masmorras de mármore contando dinheiro ou troféus enquanto, ao rés do castelo,  tudo desmorona?

Nem tão deuses, nem tão insetos.

Eu dizia por aí, antes de ler esse texto, que as pessoas que eu encontrava que eram escritores ou se consideravam grandes deuses ou grandes merdas. Mas eu não disse no sentido que Galeano atribuiu, e sim  entre os que achavam que escreviam muito bem e todos os demais seres humanos nunca escreveriam como ele(a), ou iniciantes na escrita com baixa autoestima – geralmente causada por oficinas dadas pelos escritores que se acham Deuses.

Claro, também tem os iniciantes que se acham Deuses. Sabe a pessoa que exige que amem a sua arte porque ela “está se expressando?” Como se explica para um ser humano que “se expressar” não é importante?

Desculpe. Reformularei. De um ponto de vista individual, de uma necessidade psicológica e subjetiva, “se expressar” é importante, claro. Mas só “se expressar” não é arte.

Os iniciantes-Deuses só não são insuportáveis de se conviver porque a empatia é imediata. Se a sociedade não fosse um lugar de mutilar subjetividades ou solapar individualidades com rolo compressor não tinha tanta gente se dizendo artista só porque “olha só escrevi algo que nem sei como veio, não parece eu”.

Miga, migo, escrever algo legal que você sinta de alguma forma destacado de você é só o início. Todo mundo que escreve passa por isso. É legal, eu sei. Curta e sinta O INÍCIO.

Mas, como disse, não foi nesse sentido que Galeano opôs Deuses a insetos, é na linha da crise da postagem anterior.

Nem tão deuses, nem tão insetos. A consciência de nossas limitações não é uma consciência de impotência: a literatura, uma forma de ação, não tem poderes sobrenaturais, mas o escritor pode ser um pouquinho mais mago quando consegue que sobrevivam, através de sua obra, pessoas e experiências que valem a pena.

Se o que escreve não é lido impunemente e muda ou alimenta, de alguma forma, a consciência de quem lê, o escritor pode reivindicar sua parte no processo de transformação: sem prepotência nem falsa humildade, e sabendo-se pedacinho de algo muito mais vasto.

Preciso não me esquecer que a literatura é uma forma de ação.

 

Da vela ou dos fósforos

 

(…) Desde que, adulto,  comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

 Érico Veríssimo, 1973,  Solo de Clarineta vol 1.

 

A questão é:  qual é a minha vela?

Os tempos nunca ficam exatamente claros e límpidos, por isso as nuvens carregadas voltam logo. Ou é simplesmente cíclico. A volta da era conservadora, como analistas pontuaram. Tempos glaciais.

E o ciclo glacial ressuscita aquilo que deveria ficar conservado no gelo apenas pra estudos de paleontologia. Surras de cabo elétrico por mão do pai em meninas por não serem virgens, com aval de representantes da justiça. Homens da mesma “justiça” considerando válido “reorientar” indivíduos para a sexualidade padrão e entendida como única. Sendo assim consequência e causa que passa a assustadoramente validar o fechamento da exposição do QueerMuseu, afinal instituições financeiras buscam o lucro na onda que vier. Peça primeira do efeito dominó de censuras, ato contínuo de proibir que sejam exibidas e vistas peças de temática LGBT e quadro com o nome “Pedofilia”.

Todo esse  amplo quadro serve para que os ingênuos medrosos que aplaudem tais ações com suas mãos limpas sejam usados como cortinas blindadas da podridão. As mãos limpas do cidadão “de bem” (que acha que defende a família) constroem o telhado e as quatro paredes de intimidades de atrocidades. As mãos limpas não cometem o crime, mas auxiliam como cúmplices antes e após o ato.

Minha vela:  por enquanto ela mais sangra que ilumina.

É de grupo de whatsapp, grupo de “família”, a mesma família que fez de conta que a pedofilia não existiu entre os seus lindos laços de “amor”, que recebo as mensagens contra o ensino de “ideologia de gênero” e de “esquerdismo” na escola por que afinal somos “contra a inversão de valores e a favor da família e de um mundo melhor”. Leio isso e tenho vontade de vomitar.

Esses de mãos e caras limpas que se assustam com exposições, quadros, peças e a existência do amor diverso do seu são massa de manobra feliz do sistema que serve para que mulheres continuem recebendo, sem reclamar, porras em espaço público e esporros no espaço privado. Para que homens adultos continuem a enfiar mão, dedo e pênis em seios e vaginas de crianças, o problema afinal não é ação, é a representação escandalosa no quadro. E a sexualidade de meninas é sempre propriedade de um homem, que ideia absurda essa né, da mulher ser dona do seu próprio corpo!

São essas mãos limpas que apertam junto o gatilho ou empurram em trilhos do trem homossexuais, bissexuais, transgêneros, travestis que se suicidam ou são mortos pelos simples fato de existirem.

A  massa de ar glacial invade não só o interior das casas, os bairros, a cidade, o país e o mundo. Três dias seguidos de tiroteio na Rocinha, violência que atravessa a autoestrada fechando a circulação Sul-Oeste da cidade. Fica a pergunta, será que o Rio de Janeiro inteiro precisará ser sitiado para começarmos a pensar em soluções efetivas para a guerra do tráfico a médio e longo prazo? Será que agora, com a Lagoa-Barra bloqueada por um dia e não só escolas públicas, sempre sem aulas, mas três escolas particulares também fechadas nesta segunda-feira farão os cidadãos de bem e mãos limpas da classe média e alta perceberem que o problema também é com eles?

Os ventos sombrios e gelados sopram guerras internas que fazemos de conta que não é guerra. Como se os pobres deste país não tenham sido sempre exterminados em nome da ordem social. Mas sobram também indícios de guerras externas, o idiota que é presidente dos EUA vai na ONU prometendo exterminar a Coréia por causa dos desmandos do idiota que governa lá. Paralelamente, Irã testa mísseis. E enquanto, em terras tupiniquins, a gente não acompanha mais qual a é a denúncia da corrupção da vez, qual é direcionada a empresários, qual é para deputados ou senadores, governadores, ex-presidentes ou presidente, esse último aí, o nosso idiota em exercício do golpe vai na mesma ONU falar na “sempre defesa da democracia” com a melhor cara de peroba rosa bem envernizada. De tal modo que até invejamos a sinceridade transparente de Donald Trump.

E onde fica nisso tudo eu, pessoa que escreve e quer se firmar como escritora?

Onde fica a vontade individual de ser antes de se poder estar para?

Acho que voltei a Érico Veríssimo, há tanto tempo lido, para tentar me lembrar pra quê serve escrever.

É pesado não é?  Tentar se firmar no ofício das artes ao mesmo tempo que se tenta ser útil nessa arte. E só se é útil numa arte depois de dominá-la, ser muito bom nela, pois arte precisa de visualização, de público para existir.

Talvez tenha escrito isso dando as mãos a Veríssimo-pai para tentar não chegar  à fácil e rápida conclusão de que a escrita (a arte) é inútil.

Mas eu estou reclamando à toa, isso acontece em todo ofício, professores e médicos ruins também são inúteis e mais prejudicais que uma escrita ruim. Embora não mais prejudiciais que uma ideologia opressora que algumas escritas ajudam a disseminar.

É, na verdade vem junto, para qualquer ofício bem exercido: a prática da técnica e a ética em exercê-la.

 

 

Não adianta escrever

Anotação que é parte do acervo em exposição sobre o Renato Russo em cartaz no Museu de Imagem e Som – SP

 

A exposição do MIS mostra o lado autogestor do criador da Legião Urbana.

O que me lembra uma autora que eu conheci na Patuscada.

Na festa de inauguração desta livraria, bar e café da editora Patuá.

Faz mais de um ano.

Ela divulgava seu livro e eu comentei que estava “saindo do armário” como escritora.

E ela disse (infelizmente esqueci seu nome, seu livro de poemas está em uma das minhas caixa de livros)

(Um dia eu conto porque a minha vida quase inteira está em caixas.)

Ela disse que tinha uma diferença entre ser escritora e se organizar como autora.

Que tinha escrito de modo esparso por vários anos, mas que agora,

aposentada como dentista, é que se tornou autora.

Falou da sensação de realização e alívio que é publicar o primeiro livro.

Falou da diferença que é ser mulher também nessa área.

E eu tonta, nunca tinha me dado conta disso,

sempre sentindo que falta algo por fazer,

entre tantas atividades sendo feitas,

sempre inserida na culpa

de não estar fazendo o suficiente.

Ela contou que a Alice Ruiz só começou a publicar mesmo

depois que os filhos cresceram,

porque apesar de ter escrito a vida toda,

tinha os filhos pequenos,

ajudava na organização dos livros do marido e tal,

Eu não fui atrás de confirmar essa informação,

mas me pareceu bem verossímil.

Fiquei com a lição: não adianta só escrever.

É necessário se organizar como autora.

Onde está, no Mercado, a sua verdade?

Anotação que é parte do acervo em exposição sobre o Renato Russo em cartaz no Museu de Imagem e Som – SP

 

Eu não planejei fazer um livro de contos só de protagonistas mulheres.

O primeiro projeto que eu mandei para PROAC e até para edital do MinC era um romance.

Mas travei na escrita dele, tanto na forma quanto no tema.

Ou melhor, travei quanto à forma do desenvolvimento do tema.

Então me voltei à prosa curta, como busca por linguagem, por formato.

E é muito audacioso mesmo já querer se colocar no mercado literário com romance.

Livro de contos é um começo digno, o caminho usual.

Daí, quando fui ver, a maioria dos meus contos prontos, começados ou em ideia, eram com mulheres à frente.

E de mulheres em confronto com o que é esperado delas como papel social.

O tema comum surgiu quando pensei na reunião dos textos como livro, não foi pré-planejado.

E essa organização é necessária, mas não acredite em mim, acredite em Renato Russo, justificando-a  de próprio punho na foto desta postagem.

A escrita ou composição criativa vem de forma aleatória é processo livre.

Mas a forma de apresentar não é.

É necessário organizar de forma que o público apreenda e deguste.

Um dia, conversando com Manuela Araújo e Vanessa Farias, amigas e parceiras de escrita, sobre isso de se colocar no mundo com uma obra, trazer público, essa coisa de cantores que se voltam ao público LGBT só vendo-o como mercado etc, etc, etc

a Vanessa, que é também cantora,  comentou que faria diferente seu CD, porque este seu primeiro trabalho tinha músicas de vários estilos “Hoje tô pensando em fazer um estilo só, acho que quem ouve meio que se perde, entende?”

E, principalmente, não dá pra fugir do Deus Mercado.

Mas nós três concordamos em não focar só no mercado, traindo a nossa verdade.

Onde está,  no Mercado, a sua verdade?

 

O azul e o vermelho

O ferro desenhado não é todo azul. Ferro coisa antiga, hoje é de alumínio ou vidro, os guarda-corpos. Guarda corpo? Mais ou menos.

Guarda, mas não protege. Como sombrinha em dia de tempestade. Guarda, no lugar de libertar e limita ao invés de cuidar, como certos relacionamentos. Nunca é sempre azul mas não precisa ser só cinza. Cinza todo o tempo do bom dia cuspido ao sexo escarrado.

O ferro está descascando vermelho. Vermelho vivo. Vermelho vai ficar o piso lá de baixo. O mármore da entrada do hall, orgulho do condomínio, todo desenhado com sangue pisado. Não sai o sangue do mármore, não saiu o do joelho ralado do peste de baixo do 121. Não deve ser mármore, com certeza é cerâmica da pior qualidade. Como tudo que está impregnado no apartamento.

Da varanda, vê o homem na sala de jantar, seu prato já vazio, garfo e faca sobre o miosótis desenhado da porcelana. Nem se deu ao trabalho de chamá-la para jantar. Nem olha de novo o descascado do ferro, não precisa calcular mais. Se joga.